Antecipação
biocibernética de Zaffaroni
.
A
antecipação biocibernética entende que, por haver um processo cego no campo da
causalidade, a biocibernética se propõe a fazer a ponte entre a ciência física
com a biologia, revelando que em toda conduta há uma programação, a partir de
uma antecipação do resultado. Completa Zaffaroni que a finalidade, sempre
vidente, é a condutora e dirigente da própria causalidade. Daí que Welzel
também chama a ação final de antecipação biocibernetica do resultado. Por fim,
salienta-se que, o que interessa é que o Direito Penal respeite a estrutura
ôntica da conduta
Não existe elementos da conduta, porque
ela não é composta de elementos. Mas existe aspectos da conduta que podemos
distinguir:
1. Aspectos internos: à proposição de um
fim (Nos propomos a ir a Paris) e a seleção dos meios para obtenção desse fim
(selecionados os meios para chegar lá: navio, avião etc). Sempre que nos
propomos para um fim, retrocedemos mentalmente, desde a representação do fim,
para selecionar os meios com os quais pôr em marcha a causalidade para a
produção do resultado querido. Nessa seleção também representamos os resultados
concomitantes (por navio demorará mais tempo do que por avião);
2. Aspectos externos: passamos à
exteriorização da conduta, consistente no desencadeamento da causalidade em
direção à produção do resultado colocamos em marcha a causalidade para
chegarmos a Paris. Tomamos o meio escolhido: avião ou navio.
• A estrutura da conduta segundo o
conceito ôntico-ontológico e sua tradição. O que temos explicado é que não há
um conceito jurídico-penal de conduta, mas uma completa identidade entre o
conceito ôntico-ontológico da conduta e a conduta penal. A sua origem é
aristotélica. Depois S. Tomás de Aquino toma essa idéia para dizer que não há
causalidade, mas sim finalidade, distinguindo entre a natureza como fato e a
natureza como razão: posto que o humano tende a seu fim de forma causal, o
homem deve procurar o seu fim e alcançá-lo. Hoje todas as correntes filosóficas
sustentam a correspondência entre vontade e finalidade, de modo que esse
pensamento não corresponde hoje a determinada corrente filosófico, mas a todas.
Até o idealismo, dizendo que a ação é criada pelo DP com características muito
semelhantes ao conceito ôntico-ontológicos, não se afasta dessa idéia, muito
embora seja cômoda desvirtuá-la para fazer essa afirmação (veremos adiante).
Crime em curto-circuito
A matéria está inserida no estudo da
tipicidade, mais precisamente, na análise da conduta, como elemento da
tipicidade formal.
Para a teoria causalista, de Von Litz e
Beling, a conduta se revela como simples movimento corpóreo e voluntário, capaz
de gerar alguma alteração no mundo exterior. Por outro lado, para os adeptos da
Escola Finalista, defensora da Teoria da Ação Final, toda conduta se dirige a
um determinado fim. Na seqüência, a Teoria Social da Ação prelaciona que
conduta é a ação ou omissão dirigida a um resultado socialmente relevante.
Atualmente, a conduta é compreendida
como a realização de um fazer ou não fazer típico, totalmente dominável pela
vontade humana. Para a doutrina moderna, somente é possível cogitar a
existência penal da conduta quando houver voluntariedade, de forma que essa
deve ser livre e consciente, pois, caso contrário, não haverá relevância penal.
Partindo dessa premissa, não há como
reconhecer a existência de crime quando da ausência de conduta, posto que não
atendido o primeiro requisito da dimensão objetiva da tipicidade. É neste
contexto que a doutrina analisa o chamado crime em curto-circuito, também
conhecido como de delito explosivo, de vontade instantânea, ou, por fim, ação
de curto-circuito.
Para os estudiosos que se arriscam a
tratar do tema, as ações em curto-circuito se evidenciam como reações
primitivas do ser humano. Em outras palavras, reações momentâneas e impulsivas
do indivíduo, que o levam a praticar o crime. De acordo com a análise da sua
terminologia, temos que se trata de crime de ímpeto, manifestação súbita e
violenta; impulso, ataque. Numa situação como essa, o indivíduo age num
mecanismo de reação, como se estivesse diante de uma anestesia momentânea do
seu senso crítico, movido, principalmente, pela emoção.
Na maioria das vezes, após a prática do
delito, o criminoso é arrebatado por um sentimento de arrependimento, vez que
possue desenvolvimento normal. Do que se vê, o agente de ímpeto sabe o que está
fazendo, tem plena consciência do seu ato, e, do caráter criminoso do mesmo,
mas, como não consegue se controlar, acaba praticando a infração penal.
O que se discute é se tal comportamento
pode ser considerado conduta voluntária, de forma a ensejar o reconhecimento da
prática de crime. Parcela majoritária da doutrina entende que sim. O principal
fundamento apontado é a teoria da actio libera in causa (ação livre na causa).
Salienta-se que as reações impulsivas e explosivas não possuem o condão de
afastar a voluntariedade, posto que é possível verificar, em tais situações, a
existência de um querer prévio, que dá ensejo à prática da conduta.
No caso da menina Isabella, a mídia,
amparada em especulações, já cogita da possibilidade de se falar que a madrasta
da vítima, que, possivelmente já sofreu agressões por parte de seu pai (há dois
Boletins de Ocorrência registrados) teria cometido o crime numa reação de
curto-circuito. Trata-se de hipótese, até o momento, não ventilada pelos
advogados de defesa, mas, que se for cogitada, deverá ser devidamente
comprovada, com os exames pertinentes. Ainda que seja esse o caso, conforme
exposto anteriormente, a doutrina é firme no sentido de que o indivíduo, nestas
condições, possui discernimento da sua conduta, o que deixa incólume a
voluntariedade, exigida para a caracterização da infração penal.
Crime com sujeito passivo em massa
O que se entende por crime vago? É o
mesmo que crime oco e crime com sujeito passivo em massa? Estamos diante de
conceitos totalmente distintos. Crime vago e crime com sujeito passivo em massa
são classificações do delito, cujo fundamento é o sujeito passivo.
De plano, cumpre-nos conceituar sujeito
passivo. Trata-se de quem, pela discrição típica, pode sofrer a lesão ou o
perigo de lesão ao bem jurídico. Em outras palavras, é o titular do bem
jurídico protegido, que, pode ser uma pessoa humana, o feto, o Estado ou a
sociedade, e, por fim, pessoas indeterminadas.
Fala-se em crime vago quando o sujeito
passivo não possui personalidade jurídica, ou seja, o crime é praticado contra
a sociedade como um todo. Um exemplo típico é a violação de sepultura, prevista
no artigo 210 do CP.
Em contrapartida, crime com sujeito
passivo massificado é aquele realizado contra sujeitos indeterminados, o que
evidencia que a polaridade passiva é formada por uma massa de pessoas, que não
podem ser identificadas.
Outro conceito é o de crime oco, que, em
nada se relaciona com o sujeito passivo da infração penal, sendo compreendido
como sinônimo de crime impossível. É tido como oco, pois, ou a conduta é
ineficaz (ineficácia absoluta do meio), ou o bem jurídico não existe
(improbidade absoluta do objeto), nos termos do artigo 17 do CP.
Crime de resultado cortado
O que se entende por delitos mutilados?
E delitos de resultado cortado?
São espécies de delitos de intenção
(também denominados delitos de transcendência interna). Têm, em geral, a
estrutura típica de atos de preparação ou tentados punidos como delitos
consumados. Neles, é punida a mera periculosidade da conduta, sendo
desnecessária a ocorrência do resultado efetivo, já que se consumam em momento
anterior à lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido (PRADO, Luiz
Régis. Curso de direito penal brasileiro, vol.1: parte geral, arts. 1º a 120/
Luiz Régis Prado. - 7 ed. ver. atual. ampl. - São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2007. p.374).
Os delitos de resultado cortado são
aqueles onde o agente deseja que um resultado externo ao tipo se produza,
porém, sem sua intervenção direta. Um exemplo é a extorsão mediante seqüestro,
tipificada no artigo 159 do CP.
Os delitos mutilados de dois atos (ou
vários atos) são aqueles nos quais o autor quer alcançar, após ter realizado o
tipo, o resultado que fica fora dele e que depende de um ato próprio, seu. Pode
ser ilustrado com o exemplo do crime de moeda falsa do artigo 289 do CP.
Direito penal subterrâneo
Segundo o professor Zaffaroni, o sistema
penal subterrâneo é exercido pelas agências executivas de controle - portanto,
pertencentes ao Estado - à margem da lei e de maneira violenta e arbitrária,
contando com a participação ativa ou passiva, em maior ou menor grau, dos
demais operadores que compõem o sistema penal.
O sistema penal subterrâneo
institucionaliza a pena de morte, desaparecimentos, torturas, seqüestros,
exploração do jogo, da prostituição, entre outros delitos.
Efeito prodrômico no processo penal
Etimologicamente, prodrômico vem de
prefácio, primícia.
O tema deve ser analisado sob dois
enfoques distintos. Um no Direito Processual Penal, e, outro, no Direito
Administrativo.
No processo penal, o efeito prodrômico
da sentença se relaciona com a vedação da reformatio in pejus, seja ela direta
ou indireta, na hipótese de recurso exclusivo do réu.
Vejamos:
O artigo 617 do CPP enuncia: "o
Tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos art. 383,
art. 386 e art. 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a
pena, quando somente o réu houver apelado da sentença".
O recurso de apelação, no rito do júri é
vinculado ao disposto no artigo 593 do CPP, norma essa que cuida das hipóteses
de cabimento do recurso de apelação, naquilo que se refere às decisões
proferidas no Tribunal do Júri.
Nessa linha de raciocínio, o STF, na sua
súmula 713 estabelece que "o efeito devolutivo da apelação contra decisões
do Júri é adstrito aos fundamentos da sua interposição".
Assim, em sede de apelação contra decisão
do júri, o Tribunal ad quem somente poderá analisar aquilo que estiver na
fundamentação do recurso, e, mais, deverá pautar-se nas regras estabelecidas no
dispositivo em comento.
Do que se vê, não há nenhuma hipótese
legal que autorize o reexame da matéria no caso da ocorrência de fato
superveniente (morte da vítima) à sentença proferida com base na decisão do
Conselho de Sentença. Deve-se obedecer à soberania do Tribunal do Júri (artigo
5, XXXVIII da CF).
Partindo dessa premissa, não sendo
possível uma nova análise do caso em situação como essa, não há de se falar, como já é pacífico na doutrina, em mutatio libelli
em grau recursal, vez que importaria na quebra da ampla defesa e do
"favor rei".
Salienta-se que, na pior das hipóteses,
no segundo julgamento, o órgão julgador deve aplicar o que a doutrina chama de
"efeito prodrômico da sentença", ou seja, manter a pena idêntica a do
primeiro julgamento, exatamente, em face da proibição da reformatio in pejus
indireta.
Concluindo: no direito processual penal,
o efeito prodrômico da sentença nada mais é do que a obrigação de, no
segundo julgamento, em razão de recurso exclusivo do réu, o órgão julgador,
caso não pretenda melhorar a situação daquele, observar a pena imposta na
primeira sentença.
No Direito Administrativo, o efeito
prodrômico deve ser analisado dentre os efeitos do ato administrativo. O ato
administrativo pode produzir efeitos típicos e atípicos. Os primeiros, também
conhecidos como efeito principal, são aqueles efeitos normais, ou seja, normalmente
esperados de um determinado ato. Já os atípicos, podem ser compreendidos como
efeitos inesperados, para os quais o ato não foi praticado.
A doutrina divide esses efeitos atípicos
em reflexos (quando o ato administrativo atinge terceira pessoa) e prodrômicos
(preliminar). Esse último somente se opera quando o ato administrativo depende
de duas manifestações, e, havendo a primeira, cria-se a necessidade da segunda.
Em outras palavras, trata-se de efeito que ocorre antes da conclusão do ato,
antes do efeito principal.
Estouro de urna
O chamado estouro de urna ocorre quando
se torna impossível formar um conselho de sentença no plenário do júri por
insuficiência de jurados necessários para a instauração da sessão de
julgamento. Ocorre dificilmente em casos onde, por exemplo, presentes quinze
jurados (art. 463, CPP), são iniciados os trabalhos e dispensados 03 jurados de forma imotivada, por
defesa e acusação respectivamente, e, além dos 06, são dispensados mais 03 por
motivo de suspeição ou impedimento. No exemplo, restariam apenas 06
jurados e, sendo necessários 07, se tornaria impossível a realização do
julgamento.
A fim de evitar tal ocorrência, a Lei
11.689/08 alterou a redação do Código de Processo Penal, aumentando o número de
jurados de vinte e um para vinte e cinco, exvi :
Da Composição do Tribunal do Júri e da
Formação do Conselho de Sentença
Art. 447. O Tribunal do Júri é composto
por 1 (um) juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que
serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho
de Sentença em cada sessão de julgamento. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de
2008).
De qualquer forma, ocorrendo o estouro
de urna, se aplicará o disposto no artigo 471 do CPP, que determina:
Art. 471. Se, em consequência do
impedimento, suspeição, incompatibilidade, dispensa ou recusa, não houver
número para a formação do Conselho, o julgamento será adiado para o primeiro
dia desimpedido, após sorteados os suplentes, com observância do disposto no
art. 464 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008).
Responsabilidade penal por ricochete
PESSOA JURÍDICA COMETE CRIME?
Comentários do professor Luiz Flávio
Gomes sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Muito se questiona acerca da
responsabilidade penal da pessoa jurídica. Sem sombra de dúvida, trata-se de um
dos assuntos mais debatidos no Direito Penal da atualidade.
Dentre muitas das inovações trazidas
pelo constituinte de 1988, uma das mais expressivas se relacionada com a
possibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica, prevista pela
Constituição Federal em duas hipóteses, quais sejam, nos crimes econômicos
(contra a ordem econômica e economia popular) e nos delitos ambientais,
tratadas, respectivamente nos artigos 173, § 5º e 225, § 3º, do aludido
diploma.
Note-se que, mencionados dispositivos
têm natureza jurídica de norma constitucional de eficácia limitada, o que
evidencia a necessidade de regulamentação no plano infraconstitucional. Até o
presente momento, apenas no que diz respeito aos crimes ambientais a matéria
foi regulamentada, o que se deu pela Lei 9.605/98, de forma que a discussão
sobre o cabimento ou não da responsabilização penal da pessoa jurídica se
encontra limitada a tais delitos.
No que concerne ao tema, encontramos
duas teorias: a) da ficção, preconizada por Savigny, com raízes no Direito
Romano, segundo a qual, possuindo a pessoa jurídica apenas existência abstrata,
não se pode cogitar dada possibilidade, posto que impossível reconhecer vontade
própria, conduta e culpabilidade em tais entes, b) da realidade (personalidade
real), defendida por Otto Gierke, de origem germânica, que ressalta ser a
pessoa jurídica um ente real, com vontade própria, que se evidencia no poder de
seu órgão colegiado.
Segundo nosso ver, a estrutura do
ordenamento jurídico-penal brasileiro e os princípios por ele adotados se
mostram como o maior obstáculo para o reconhecimento da responsabilidade penal
da pessoa jurídica. O princípio da responsabilidade pessoal, que constitui um
dos comandos basilares do clássico Direito Penal é inequivocamente incompatível
com esse tipo de responsabilidade. Destarte, não se deve compreendê-la como
efetiva responsabilidade penal, mas sim, como instituto do Direito Penal
Sancionador, vez que indispensável a intervenção judicial para a imposição da
sanção penal prevista em lei.
Vale lembrar que, nada obstante essa
discussão em relação à natureza da responsabilidade da pessoa jurídica no
tocante aos crimes ambientais, inevitável a aplicação da teoria da dupla
imputação, consoante a qual a pessoa jurídica jamais pode integrar, sozinha, o
pólo passivo da ação penal. Trata-se da consagração da teoria da responsabilidade penal por
ricochete (de empréstimo ou por procuração), que determina ser imprescindível
para a responsabilidade penal da pessoa jurídica a prática de um fato punível
por uma pessoa física. Nessa esteira, num primeiro momento, deve essa ser
incriminada, e, posteriormente, por reflexo, alcança-se a pessoa jurídica,
desde que preenchidos os requisitos legais, como a atuação em nome da pessoa
jurídica, em benefício dessa.
De tal modo, entendemos que a pessoa
jurídica não pratica fato típico, exatamente por não possuir vontade e
culpabilidade, sendo possível apenas vislumbrar a sua responsabilidade penal no
sentido de lhe ser imposta uma sanção de caráter penal compatível com a sua
natureza. Falamos, assim, da responsabilidade social da pessoa jurídica, que a
evidencia como solidária da pessoa física autora do delito ambiental.
Teoria das janelas quebradas
Janelas quebradas, tolerância zero e
criminalidade
Publicado em 02/2003
Daniel Sperb Rubin
Introdução
Enquanto os índices de criminalidade no
Brasil atingem níveis intoleráveis, obrigando o cidadão de bem a trancar-se
dentro de sua própria casa, e as autoridades responsáveis pela política de
segurança pública em nosso país parecem simplesmente não saber que rumo tomar,
nos Estados Unidos encontra-se em pleno andamento uma extraordinária
experiência de redução de criminalidade.
Pela primeira vez depois de trinta anos
de aumento contínuo, os índices de criminalidade nas grandes cidades dos EUA
apresentam substancial redução [1]. A que se deve isso? Ouve-se falar na
política criminal de tolerância zero. Sabe-se que foi aplicada em Nova Iorque,
durante a gestão do Prefeito Rudolph Giuliani. Mas não se sabe exatamente quais
seus fundamentos teóricos. Ouve-se falar, também, na brokenwindowstheory
(teoria das janelas quebradas), mas, igualmente, não se sabe qual a sua origem
e o que, exatamente, significa.
Neste despretensioso estudo,
procuraremos demostrar como os EUA, a partir da brokenwindowstheory e da
operação tolerância zero, conseguiram reduzir drasticamente os índices de
criminalidade em algumas de suas grandes cidades, notadamente, em Nova Iorque.
Analisaremos algumas críticas feitas à política criminal de tolerância zero,
bem como os limites impostos pelo judiciário americano, ocasião em que se fará
menção a algumas decisões que informam a jurisprudência americana acerca do
assunto. Por fim, teceremos considerações sobre a situação brasileira no
combate à criminalidade.
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Broken Windows
Theory
– Origens e Fundamentos
Em 1982, o cientista político James Q.
Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling, ambos americanos,
publicaram na revista AtlanticMonthly um estudo em que, pela primeira vez, se
estabelecia uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade. Naquele
estudo, cujo título era The Police andNeiborghoodSafety ( A Polícia e a
Segurança da Comunidade), os autores usaram a imagem de janelas quebradas para
explicar como a desordem e a criminalidade poderiam, aos poucos, infiltrar-se
numa comunidade, causando a sua decadência e a conseqüente queda da qualidade
de vida.
Kelling e Wilson sustentavam que se uma
janela de uma fábrica ou de um escritório fosse quebrada e não fosse
imediatamente consertada, as pessoas que por ali passassem concluiriam que
ninguém se importava com isso e que, naquela localidade, não havia autoridade
responsável pelo manutenção da ordem. Em pouco tempo, algumas pessoas
começariam a atirar pedras para quebrar as demais janelas ainda intactas. Logo,
todas as janelas estariam quebradas. Agora, as pessoas que por ali passassem concluiriam
que ninguém seria responsável por aquele prédio e tampouco pela rua em que se
localizava o prédio. Iniciava-se, assim, a decadência da própria rua e daquela
comunidade. A esta altura, apenas os desocupados, imprudentes, ou pessoas com
tendências criminosas, sentir-se-iam à vontade para ter algum negócio ou mesmo
morar na rua cuja decadência já era evidente. O passo seguinte seria o abandono
daquela localidade pelas pessoas de bem, deixando o bairro à mercê dos
desordeiros. Pequenas desordens levariam a grandes desordens e, mais tarde, ao
crime.
Em razão da imagem das janelas
quebradas, o estudo ficou conhecido como brokenwindows, e veio a lançar os
fundamentos da moderna política criminal americana que, em meados da década de
noventa, foi implantada com tremendo sucesso em Nova Iorque, sob o nome de
"tolerência zero".
Ainda exemplificando, Kelling e Wilson
afirmavam que uma comunidade estável, na qual as famílias cuidavam de suas
casas, se preocupavam com as crianças dos outros e desconfiavam de estranhos,
poderia transformar-se, em poucos anos, ou até mesmo meses, em uma selva
assustadora. Uma propriedade é abandonada. O mato cresce. Uma janela é
quebrada. Adultos deixam de repreender crianças e adolescentes desordeiros.
Estas, encorajadas, tornam-se mais desordeiras. Então, famílias mudam-se
daquela comunidade. Adultos, sem laços com a família, mudam-se para aquela
comunidade. Adolescentes desordeiros começam a se reunir na frente da loja da
esquina. O comerciante pede que se retirem. Eles recusam. Brigas ocorrem. O
lixo se acumula. Pessoas começam a embriagar-se em frente aos bares. Um bêbado
deita na calçada e lá permanece. A desordem se estabelece, preparando o terreno
para a ascensão da criminalidade.
Em 1990, o Professor da Universidade
Northwestern de Ciências Políticas, Wesley Skogan, publicou um estudo baseado
em pesquisa na qual 13.000 pessoas residentes em áreas residenciais de Atlanta,
Chicago, Houston, Filadelfia, Newark e São Francisco haviam sido entrevistadas.
O estudo era entituladoDisorderand Decline: Crime andtheSpiralofDecay in
AmericaNeighborhoods (Desordem e Declínio:O Crime e a Espiral de Decadência nas
Comunidades Americanas) e confirmava os postulados da brokenwindowstheory. Mas
ia além disso, afirmando que a relação de causalidade entre desordem e
criminalidade era mais forte do que a relação entre criminalidade e outras
características encontradas em determinadas comunidades, tais como a pobreza ou
o fato de a comunidade abrigar uma minoria racial. Esta conclusão é de fundamental
importância, especialmente diante da afirmação, sempre repetida e jamais
comprovada, de que a principal causa da criminalidade reside nas injustiças
sociais, desemprego, pobreza, falta de oportunidades, etc. Mais adiante, quando
analisarmos às objeções a brokenwindowstheory e à tolerância zero, voltaremos
ao assunto.
Em 1996, Kelling, em conjunto com
Catherine Coles, lançou a obra definitiva sobre a teoria das janelas quebradas:
FixingBroken Windows – RestoringOrderandReducing Crimes in OurCommunities
(Consertando as Janelas Quebradas – Restaurando a Ordem e Reduzindo o Crime em
Nossas Comunidades). Nesta obra, o autor iria além, e demonstraria a relação de
causalidade entre a criminalidade violenta e a não repressão a pequenos delitos
e contravenções. Assim como a desordem leva à criminalidade, a tolerância com
pequenos delitos e contravenções, leva, inevitavelmente à criminalidade
violenta.
No entanto, muito antes, em 1967, um
relatório [2] preparado para uma comissão criada pelo então Presidente Lyndon
Johnson para o estudo de estratégias de combate à criminalidade (Commissionon
Law Enforcementand Crime) já apontara, com base em pesquisas e entrevistas com
cidadãos que o medo da criminalidade estava fortemente relacionado à existência
de desordem nas comunidades. No entanto, esta relação foi ignorada até o início
dos anos 80 e, registre-se, continua a ser contestada (e ainda ignorada em
muitos países), não obstante as evidências que indicam o seu acerto.
Durante três décadas, a criminalidade só
fez aumentar nos EUA. O modelo americano de combate à criminalidade falhara
porque não reconhecia a relação de causa e efeito entre desordem, medo,
criminalidade violenta e decadência urbana. Kelling e Coles demonstram como, ao
longo do século XX, a polícia americana foi, aos poucos, abandonando suas
tarefas na manutenção da ordem pública para dedicar-se, exclusivamente, ao
combate ao crime. A raiz do aumento da violência nos EUA na segunda metade do
século XX está, também, nesta mudança de estratégia da polícia. Originalmente,
o papel da polícia americana era o de manter a paz e prevenir o crime. A
prevenção do crime era feita com a presença constante da polícia no seio da
comunidade. E aqui reside outro fundamento da brokenwindowstheory. O policial
deve fazer parte da comunidade, entranhar-se na comunidade, e lidar com as
condições que criam o crime (desordens de todo o tipo, embriaguez pública,
jogos ilegais, etc.). Assim, ele conhece a comunidade, e é conhecido por ela.
Cria-se um vínculo entre a comunidade e a autoridade policial, e este vínculo,
permite que ambos juntem forças para evitar o surgimento da desordem e de
pequenos delitos que, mais tarde, levarão à criminalidade violenta. Assim, se
algum traficante tenta imiscuir-se naquela comunidade, tanto a comunidade como
a polícia podem imediatamente identificá-lo, e unindo forças, expulsá-lo de lá,
ou mesmo prendê-lo se o mesmo for apanhado no exercício do tráfico. Mas para
isso é preciso uma comunidade organizada, que preze a manutenção da ordem, e
uma relação de confiança entre a comunidade e a polícia, de modo que ambos se
auxiliem mutuamente.
O policiamento comunitário, portanto, é
fundamental na prevenção do crime. A presença física do agente policial na
comunidade inibe a desordem e a criminalidade. Neste sentido, Kelling e Coles
são defensores do "footpatrol", ou seja, do patrulhamento a pé, da
figura do agente policial que percorre a pé as ruas do bairro, muito mais
eficaz, do ponto de vista da prevenção, do que dos agentes policiais motorizados,
que nada mais fazem do que circularem de carro. Aos desordeiros basta,
portanto, esperar que passe o carro da polícia, para continuar a desordem, o
que torna-se muito mais difícil com o patrulhamento a pé.
Nos EUA criou-se a idéia de que a
polícia não devia mais zelar pela ordem pública, mas investir todos os seus
esforços apenas no combate ao crime. Assim, desordens e pequenos ilícitos foram
deixados de lado, para que se combatesse apenas os crimes mais graves.
Portanto, as pequenas janelas quebradas não mais eram reparadas, até que
chegou-se a um ponto insustentável onde a criminalidade aumentou de tal forma
nos centros urbanos, que muitos deram-se por conta do equívoco da estratégia
adotada.
No Brasil, já chegamos a este ponto há
muito tempo. A "estratégia das prioridades", adotada tanto pela
Polícia como, pode-se dizer, por Juízes e Promotores, e que consiste em
priorizar o combate à criminalidade violenta, sob argumentos diversos, que vão
desde a falta de recursos até a desnecessidade de reprimir comportamentos que
configuram não mais do que um mero ato de desordem ou uma pequena contravenção,
passando pela alegação de o crime tem causas sociais, repete o equívoco
cometido nos EUA e é uma das principais causas do aumento avassalador da
criminalidade violenta em nosso país.
Sob esta estratégia, cria-se um círculo
vicioso que retroalimenta a criminalidade violenta. Não se combate a desordem e
os pequenos delitos porque deve-se priorizar o combate à criminalidade
violenta. No entanto, a criminalidade violenta é justamente resultado da falta
de combate à desordem e aos pequenos delitos. Esta lógica perversa precisa, em
algum momento, ser quebrada.
Como diz Kelling, o Juiz pode achar
difícil que apenas uma janela quebrada seja tão importante para permitir que a
polícia exerça alguma autoridade sobre uma pessoa que possa quebrar mais
janelas. Ocorre que o Juiz vê apenas um flash da rua num determinado momento,
ao passo que o público, ao contrário, vê todo o filme se desenrolando a sua
frente, que mostra a lenta e inexorável decadência da sua rua e de sua
comunidade.
A Broken Windows Theory aponta um
caminho para a redução da criminalidade, que já teve efeitos positivos nos EUA,
como a seguir se verá, e que tem como base a repressão à desordem e aos
pequenos delitos e, também, o policiamento comunitário. Não é mais possível
ignorar esta extraordinária vitória contra o crime.
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A Operação Tolerância Zero – A Retomada do Metrô e das Ruas
para o Povo de Nova Iorque
Um dos principais temas de debate
durante a campanha para as eleições à Prefeitura de Nova Iorque, em 1993, foi o
que fazer contra os "esqueegeemen", pessoas, normalmente jovens e
atuando em grupo, que mediante ameaças veladas, ou nem tanto, extorquiam
dinheiro de motoristas após terem lavado os pára-brisas dos carros sem que
tivessem sido solicitados a fazê-lo. Tanto David Dinkins (então Prefeito) como
Rudolph Giuliani (um ex-Promotor Federal que viria a ser eleito) prometiam um
combate incessante contra a atuação destes grupos, simplesmente porque esta era
uma das principais reclamações dos nova-iorquinos que viam na atuação daquelas
pessoas a ausência de ordem e autoridade, bem como uma ameaça constante, que
levava ao medo e à decadência da qualidade da vida urbana. Esta situação bem
demonstra o ponto de insuportabilidade a que o cidadão comum daquela metrópole
chegou, quando passou a exigir das autoridades providências enérgicas no
sentido de restabelecer-se a qualidade de vida, já então em plena decadência.
Na verdade a decadência urbana de Nova
Iorque desenvolvera-se de maneira lenta e constante ao longo dos anos 70 e 80,
diante da tolerância com a desordem e os pequenos ilícitos. As pichações não eram
reprimidas. As gangues se proliferavam. Permitia-se que os sem-teto ocupassem
espaços públicos, como metrôs, parques e praças, e lá fizessem suas
necessidades. Não se os obrigava a recolherem-se aos abrigos públicos. Além
disso, eles passavam a mendigar de maneira cada vez mais agressiva e
ameaçadora. Pequenos delitos como ingressar no metrô sem o pagamento da
passagem, pulando a catraca, quase não eram mais reprimidos. Tudo isso levava a
um aumento constante da criminalidade.
Esta situação era mais grave ainda no
sistema de transporte subterrâneo de Nova Iorque, o metrô, em razão das
peculiaridades de se tratar de um local fechado, deserto à noite, mas utilizado
por grande parte dos habitantes como único meio de transporte viável
(aproximadamente três milhões de pessoas utilizam o metrô de Nova Iorque num
único dia). O metrô tornara-se um grande problema.
Em abril de 1990, William Bratton, um
policial que fizera carreira rápida e brilhante na polícia de *&¨%, tendo
se destacado principalmente por sua atuação frente à polícia de trânsito
daquela cidade, foi contratado pela Polícia de Trânsito de Nova Iorque, para
"resolver o problema do metrô". Antes, George Kelling já havia sido
contratado e, com a chegada de Bratton, passou a "alimentá-lo" com
idéias e material de leitura.
Bratton imediatamente identificou os
três principais problemas do metrô: passageiros que pulavam a catraca e não
pagavam a passagem, desordem e crime.
O não pagamento da passagem havia se
tornado epidêmico. O prejuízo da municipalidade girava em torno de oitenta
milhões de dólares por ano. Os desordeiros simplesmente pulavam as catracas.
Aqueles que pagavam sentiam que estavam entrando em um local onde não havia lei
e a desordem imperava e começavam a se perguntar se valia a pena continuar
respeitando a lei.
A desordem só fazia crescer. Pichações,
mendicância agressiva e vandalismo criavam um clima propício à criminalidade.
A criminalidade no metrô aumentava e
tornava-se mais violenta, com a proliferação de gangues juvenis, cada vez mais
usando armas de fogo e simplesmente assaltando as pessoas.
Bratton teve imensas dificuldades no
sentido de mostrar aos policiais sob o seu comando a necessidade de combater-se
a desordem e o não pagamento das passagens. Afinal de contas, como policiais, e
em consonância com a política de segurança pública até então adotada, eles
achavam que o seu trabalho era combater o crime e não a desordem ou o não
pagamento de passagens. Vencida esta barreira, ele começou a aplicar a
brokenwindowstheory ao problema do metrô.
No seu entendimento, o não pagamento da
tarifa era a principal janela quebrada no sistema subterrâneo de trânsito. Até
então, a Polícia de Trânsito não prendia em grande número aqueles que pulavam
as catracas. Isto era considerado um delito menor. Apenas uma ou duas vezes por
ano, eram feitas prisões em massa e os detidos eram levados ao YankeeStadium,
numa espécie de demonstração pública. Isto, obviamente, em nada alterava a
situação. Bratton começou a aplicar uma estratégia de fazer pequenas prisões em
massa, de estação em estação. Como não havia efetivo suficiente para efetuar as
prisões em todas as estações, a Polícia de Trânsito de Nova Iorque alternava
dias e horários. Em algumas estações, era como se não houvesse catracas. A
imensa maioria das pessoas simplesmente pulava por elas. Nesta situação,
policiais a paisana apenas esperavam as ondas de dez ou vinte "saltadores
de catraca" para então prendê-los. Os poucos que ainda pagavam a passagem,
ao verem as prisões sendo efetuadas, estimulavam e elogiavam os policiais.
Pagar a passagem começava novamente valer a pena. Mesmo às três horas da
madrugada, policiais à paisana postavam-se nas estações, como se fossem
passageiros esperando o metrô. Um desordeiro entrava na estação, olhava para os
lados e não via nenhum policial uniformizado. Pulava a catraca e era
imediatamente preso pelos policiais à paisana. O medo da prisão começou a
alterar o comportamento daqueles que não pagavam a passagem. A quantidade dos
que não pagavam começou a declinar significativamente. A primeira grande janela
quebrada estava sendo consertada.
Àquela altura, já estava ficando claro
para Bratton que a grande maioria das pessoas detidas por não pagarem a
passagem eram justamente aquelas que causavam desordem no interior do metrô.
Além disso, muitas das pessoas detidas, ou carregavam armas consigo, ou eram
pessoas procuradas com mandados de prisão expedidos contra si. Atacando o
problema do não pagamento das passagens, estava-se prevenindo a desordem e
também que elementos criminosos entrassem no sistema subterrâneo de trânsito.
Depois de um tempo, os desordeiros e criminosos começaram a deixar suas armas
em casa. Menos armas, menos roubos, menos assaltos, menos assassinatos, menos
vítimas. Começava-se a demonstrar, na prática, a relação entre desordem e
criminalidade no interior do metrô. E, talvez mais importante, mediante um
trabalho que era, ao mesmo tempo de repressão e de prevenção. Repressão à
desordem e aos pequenos delitos. Prevenção aos crimes graves. E tudo isto apenas
pela repressão a um delito patrimonial que custava, isoladamente, pouco mais de
um dólar, e que, segundo muitos "entendidos", jamais deveria merecer
a menor atenção da polícia.
Quando venceu as eleições para a
Prefeitura de Nova Iorque em 1993, Rudolph Giuliani nomeou Bratton para chefiar
o Departamento de Polícia. Depois do metrô, era hora de devolver as ruas aos
novaiorquinos.
O que Bratton fez, em verdade, foi uma
profunda reestruturação do Departamento de Polícia de Nova Iorque, mas tendo
como uma das premissas básicas sempre os postulados da brokenwindowstheory.
Tendo em mente sempre a necessidade de coibir a desordem e reprimir os pequenos
delitos, Bratton foi, aos poucos, devolvendo as ruas ao povo.
Uma de suas primeiras iniciativas foi
atacar a conduta daqueles grupos de jovens que, de maneira velada ou não,
geralmente em grupos, extorquiam dinheiro de motoristas após terem lavado os
pára-brisas dos carros sem terem sido solicitados a fazê-lo. O que poderia
parecer, em um primeiro momento, algo com que a polícia sequer deveria se
preocupar, estava, na verdade, atormentando os motoristas, que se sentiam
constantemente ameaçados. Era, na verdade, uma janela quebrada. Como esta
conduta constituia uma infração menor, punida apenas com serviços comunitários,
estas pessoas não podiam ser presas, mas apenas intimadas a comparecer em
juízo. Ocorre que nem isto vinha sendo feito. Começou-se a fazer. No início, os
intimados não compareciam a juízo e isto (o não atendimento à intimação)
autorizava que fossem presos. Então prisões foram feitas. Com a certeza da
punição, aquilo que durante anos atormentara a vida dos motoristas de Nova
Iorque teve fim em poucas semanas.
Outras pequenas vitórias contra pequenos
ilícitos confirmavam a teoria de Kelling: uma pessoa foi presa por urinar num
parque, quando questionada sobre outros problemas deu informações à polícia que
resultaram na localização de um esconderijo de armas; um motociclista foi
detido por andar sem capacete, revistado, descobriu-se que carregava duas armas
consigo e tinha várias outras em seu apartamento; uma pessoa vendendo
mercadoria de origem suspeita, depois de questionada levou a polícia a um
receptador de armas roubadas.
Nem todo aquele que pratica um delito
menor pode ser considerado capaz de um delito grave. No entanto, alguns serão,
especialmente se não encontrarem nenhuma repressão ao pequeno ilícito
praticado. Além disso, podem ter informações sobre outras pessoas que são
criminosos perigosos.
Outro fundamento da brokenwindowstheory,
o policiamento comunitário, também foi aplicado por Bratton em Nova Iorque. Em
verdade, quando ele assumiu a chefia do Departamento de Polícia, tal plano já
estava em andamento, com a contratação de mais policiais para trabalharem nas
ruas e nas comunidades. O que Bratton fez foi aperfeiçoar o plano,
identificando as áreas de maior criminalidade e desordem, e lá lotando um maior
número de policiais. Bratton é explícito ao afirmar que "os policiais
comunitários podem identificar as preocupações da comunidade e, algumas vezes,
prevenir o crime simplesmente com a sua presença física".
E para os que ainda acham que um maior
número de policiais nas ruas e entranhados nas comunidades não faz muita
diferença, é o insuspeito ClausRoxin quem diz: "... sobretudo, sou partidário
da concepção – que surgiu na América do Norte e pouco a pouco ganha mais
partidários na Alemanha -, de que a polícia faz falta na rua e não nos
gabinetes públicos" [3].
Em estudo sob o título
"Policiamento Comunitário e Controle sobre a Polícia – a experiência
norte-americana", Theodomiro Dias Neto, Mestre em Direito pela
Universidade de Wisconsin (EUA) e Doutorando em Direito pela Universidade do
Sarre (Alemanha), afirma que o debate contemporâneo na área policial gira em
torno de como viabilizar a parceria entre polícia e comunidade na tarefa de
prevenção ao crime, informando que a proposta é um estilo diferenciado de
policiamento, caracterizado por: 1) uma concepção mais ampla da função policial
que abrange a variedade de situações não-criminais que levam o público a
invocar a presença da polícia; 2) descentralização dos procedimentos de
planejamento e prestação de serviços para que as prioridades e estratégias
policiais sejam definidas de acordo com as especificidades de cada localidade;
3) maior interação entre policiais e cidadãos, visando ao estabelecimento de
uma relação de confiança e cooperação mútua. [4] Tanto a brokenwindowstheory,
como a operação tolerência zero, abarcam estes três itens. E é isto o que
Bratton fez em Nova Iorque. Quando refere "concepção mais ampla da função
policial que abrange a variedade de situações não-criminais que levam o público
a invocar a presença da polícia", Theodomiro Dias Neto está fazendo
explícita referência à manutenção da ordem como uma das funções policias.
O resultado da aplicação da
brokenwindowstheory pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque foi a
diminuição, pela primeira vez em trinta anos, dos índices de criminalidade
naquela cidade. Desde 1994, tais índices vêm diminuindo. A história desta estratégia
vitoriosa é contada por William Bratton em seu livro "Turnaround –
HowAmerica’s Top CopReversedthe Crime Epidemic" (A Reviravolta – Como a
Polícia Americana Reverteu a Epidemia de Crime). Esta política de segurança
pública, a da aplicação da teoria de Kelling no combate à criminalidade em Nova
Iorque é que veio a ser popularmente conhecida como "operação tolerância
zero". Muito distante, portanto, da caricatura que alguns desinformados,
por vezes, pintam, reduzindo a "operação tolerância zero" a uma mera
"limpeza" das ruas centrais da cidade, que, na sua equivocada visão,
consistiria apenas na retirada de prostitutas, gigolôs, bêbados e traficantes
das ruas centrais de Nova Iorque.
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A Legislação e a Jurisprudência Americanas – Um pequeno
apanhado
Nos EUA já existiam, bem antes do
advento da brokenwindowstheory e da "operação tolerância zero", leis
que criminalizavam determinadas condutas que, durante muito tempo, foram vistas
apenas como meros atos de desordem. A autoridade para regular e reprimir
legalmente comportamentos como mendicância agressiva, embriaguez pública, o uso
apropriado dos parques e ruas da cidade, reside no poder constitucional do
estado em prover a saúde, a segurança e a qualidade de vida dos cidadãos.
Nos EUA um Estado pode delegar a uma
municipalidade o poder de regular as condutas nestas áreas ou pode regular ele
próprio inteiramente estas áreas. Todavia, Kelling e Coles informam que isto
não tem sido fácil. Há uma razoável possibilidade de que regulamentos ou
decretos municipais sejam considerados inconstitucionais, e que as municipalidades
venham a ser processadas por aquelas pessoas que, eventualmente, tenham sofrido
alguma restrição com base nestes regulamentos ou decretos.
Em verdade, o que ocorre é uma tensão ou
um choque entre os direitos individuais daqueles que alegam que suas condutas
supostamente desordeiras nada mais configuram do que o seu mero direito de
expressão, e o direito da comunidade, para a qual os direitos individuais, por
vezes, devem dar lugar aos valores comunitários, a fim de que a ordem possa ser
mantida na comunidade, impedindo-se, assim, a proliferação da desordem e a
ascensão da criminalidade.
Os que se contrapunham ao direito de se
reprimir legalmente algumas condutas tidas como atos de desordem, tinham,
fundamentalmente, duas restrições: a primeira era quanto à tipificação dos
comportamentos, que alegavam ser vaga e imprecisa; e a segunda era de que tais
leis, em verdade, não reprimiam uma conduta, mas sim uma condição (ou um
status); a condição de pobre, sem-teto, viciado, etc. Tais restrições foram,
eventualmente, levadas ao Judiciário americano.
Num primeiro momento, as tentativas de
se reprimir legalmente tais comportamentos podem ser resumidas em dois tipos de
leis: as "vagrancylaws" e as "loiteringlaws", algo que pode
ser definido como "leis anti-vadiagem" e "leis contra o ato de
perambular, demorar-se em um local, vagar sem destino".
Kelling e Coles referem dois casos
fundamentais nos quais a Suprema Corte dos EUA julgou inconstitucional as
"vagrancy e loiteringlaws".
O primeiro é o caso Papachristow v. City
of Jacksonville, de 1972. Neste caso, oito indivíduos, entre negros e brancos,
foram acusados de vagar a esmo, de carro, sem destino, perambulando pelas ruas
de um bairro. Foram condenados por violarem uma lei de Jakcsonville, Florida,
segundo a qual "elementos perniciosos, *&¨%$, pessoas licenciosas, que
perambulam de um lugar para outro, sem qualquer objetivo ou motivo legal, devem
ser tidas como vadios, para efeitos legais". A Suprema Corte anulou a
condenação, considerando que a lei de Jacksonville era imprecisa e vaga ao
tipificar o comportamento incriminado, porque falhava na função de dar a uma
pessoa de mediana inteligência uma informação razoável de que sua conduta era
proibida e também porque estimulava prisões e condenações arbitrárias. A Suprema
Corte também enfatizou que a lei em questão era inadmissível porque tornava
criminosas condutas inocentes, tais como o simples ato de vagar ou perambular
sem destino, que tinha sido, inclusive, parte da tradição americana. O
resultado de um diploma legal tão impreciso seria, ainda segundo a Suprema
Corte, colocar uma excessiva discricionariedade nas mãos da polícia.
O segundo caso é Kolender v. Lawson, de
1983. Lawson tinha sido detido ou preso pela polícia 15 vezes entre março de
1975 e janeiro de 1977, cada uma dessas vezes caminhando tarde da noite numa
rua isolada próximo a uma área de alta criminalidade ou em uma área comercial
onde muitos arrombamentos haviam sido cometidos. Foi acusado de acordo com uma
seção da Lei Penal da Califórnia, que estabelecia:
"Toda pessoa que comete um dos
seguintes atos é culpada de conduta desordeira, uma contravenção:.. . e) que
perambula ou vagueia pelas ruas, sem razão aparente, e que se recusa a se
identificar ou a prestar contas de sua conduta, quando requerido pela
autoridade a fazê-lo, se as circunstâncias são tais que indicam, para uma
pessoa razoável, que a segurança pública exige a sua identificação".
A Suprema Corte considerou a lei vaga e
imprecisa diante da exigência do devido processo legal da 14 ª Emenda à
Constituição por falhar ao definir a conduta criminal com suficiente precisão
para que uma pessoa comum pudesse entender que sua conduta é proibida e de uma
maneira que não encorajasse a arbitrariedade e a discricionariedade excessiva.
Como resultado destas duas decisões, a
polícia e os Promotores deixaram de aplicar outras leis similares, que, não
obstante não tivessem sido declaradas inconstitucionais, não eram mais
aplicadas.
O próximo passo na busca de uma
legislação que coibisse a desordem foram as "Loitering For
thePurposeofLaws". Tais leis acresciam uma particular finalidade ao ato de
vaguear, algo equivalente ao elemento subjetivo do tipo do direito brasileiro.
Assim, o simples ato de perambular ou vagar de lugar em lugar não era tipificado.
No entanto, se tal ato tivesse por finalidade um outro ato proibido pelo
ordenamento jurídico, então a lei não seria inconstitucional. Um exemplo deste
tipo de lei é a seção 647 (d) da Lei Penal da Califórnia conforme a qual
"qualquer pessoa que esteja a vaguear próxima a um banheiro público para o
fim de satisfazer sua lascívia ou para qualquer outro ato ilegal" incorre
num ilícito penal. A Suprema Corte, em 1988, considerou constitucional esta
lei, entendendo que a exigência do conhecimento de que determinada conduta era
ilegal e a linguagem especificando o local do fato, diminuía qualquer potencial
indeterminação da norma e cumpria sua função de noticiar os atos proibidos,
além de evitar eventuais abusos policiais. Em outro julgamento, deste feita de
uma Lei de Milwaukee (que tipificava a conduta de vaguear a ela acrescendo uma
série de circunstância especiais e específicas), a Suprema Corte de Wisconsin
manteve a lei da Municipalidade, e acrescentou ainda que existem áreas da
conduta humana que, pela natureza dos problemas que apresentam, simplesmente
tornam impossível ao legislador definir com exatidão absoluta a conduta
ilícita.
As "Loitering For the Purpose of
Laws" representaram um avanço.No entanto, segundo Kelling e Coles, nem
todas as Cortes americanas aceitaram a constitucionalidade das mesmas. Ainda
assim, em muitos estados americanos tais leis estão em vigor, e sendo
aplicadas.
Mas tais leis e regulamentos também
tiveram contra si a alegação de violação à primeira emenda à Constituição
Americana que protege o direito de expressão [5]. Em Young v. New York City
Transit Authority, em 1990, o Departamento de Trânsito de Nova Iorque foi
processado porque seus regulamentos anti-mendicância no interior dos metrôs
estariam violando a primeira emenda. A primeira emenda protege não apenas o
mero direito de expressão verbal, mas também a conduta em que um comportamento
e a expressão estão intrinsecamente ligados, de maneira a passar uma
determinada mensagem. Exemplificando, a primeira emenda sustentou condutas tais
como a queima da bandeira americana e passeatas em protesto contra o
envolvimento dos EUA no Vietnã. Ou seja, outras formas de expressões
não-verbais estão protegidas pela primeira emenda. Neste caso, o direito dos
sem-teto de mendigar seria uma forma de expressão protegida pela primeira
emenda. Anteriormente, a Suprema Corte havia entendido que as solicitações de
fundos feitas por organizações de caridade eram uma forma de liberdade de
expressão protegida pela primeira emenda, pois passaria uma mensagem sobre uma
causa particular. Sem a solicitação de fundos, a mensagem ficaria muito
prejudicada. Seria um dos casos em que a conduta (solicitar fundos) estaria
intrinsecamente ligada à mensagem (os problemas dos necessitados). O Juiz que
julgou o caso entendeu que a mendicância individual estaria protegida pela
primeira emenda porque não seria possível dar a esta um tratamento diferenciado
do tratamento dado às solicitações feitas por entidades de caridade. Além
disso, entendeu que os interesses do Departamento de Trânsito (proteção dos
usuários do metrô contra comportamentos que pudessem configurar ameaças e
intimidações mediante uma mendicância agressiva) não eram suficientes para
coibir o direito de mendigar dos sem-teto no metrô.
A decisão foi duramente criticada pela
imprensa. Houve editorial que perguntou "quem é esse Juiz suburbano, que
nunca usou o metrô para dizer aos Nova Iorquinos o que eles devem
agüentar"?
No entanto, a decisão foi modificada em
grau de recurso. Os juízes entenderam que o ato de mendicância não poderia ser
considerado como um direito de expressão resguardado pela primeira emenda, uma
vez que a imensa maioria dos indivíduos que mendiga, o fazem para coletar algum
dinheiro, e não para passar alguma mensagem ao público. Se alguns sem-teto
quisessem passar alguma mensagem sobre a falta de políticas públicas com
relação à falta de moradia ou sobre sua própria situação, seria muito
improvável que os passageiros do metrô, testemunhando aquela conduta
(mendicância agressiva) pudessem concluir que o sem-teto estivesse passando uma
mensagem, pelas específicas circunstâncias do metrô, que, antes, os fariam se
sentir ameaçados e importunados. Prosseguindo, os juízes entenderam que os
regulamentos anti-mendicância do Departamento de Polícia de Nova Iorque não se
destinavam à supressão do direito de expressão no metrô, mas sim a garantir um
ambiente seguro nas estações, prevenindo qualquer ato que pudesse causar
intimidação ou atormentasse os passageiros. Por fim, os juízes concluíram que,
mesmo se as condutas dos sem-teto no interior do metrô estivessem protegidas
pela primeira emenda, a decisão de primeira instância havia pecado por ter
superdimensionado o direito destes em detrimento do bem comum.
No entanto, a demonstrar o dissenso jurisprudencial,
uma lei da Municipalidade de Nova Iorque que considerava contravenção
perambular, permanecer ou vagar em local público (fora dos metrôs, em parques,
ruas, etc.), para o fim de mendigar foi declarada inconstitucional por ofender
a primeira emenda. O juiz entendeu que a mendicância era uma conduta e também
forma de expressão que estavam intrinsecamente ligadas, e, portanto, protegidas
pela primeira emenda, tal como as solicitações de fundos por entidades de
caridade.
Não há consenso, portanto, acerca destas
leis cujo principal objetivo é manter ou restaurar a ordem a fim de evitar o
avanço da desordem e da criminalidade. A tendência é que o legislador
aperfeiçoe cada vez mais a técnica legislativa, a fim de que a lei resista aos
testes de constitucionalidade, não podendo alegar-se que é vaga ou imprecisa e
tampouco que ofende a primeira emenda à Constituição. Esta tendência aponta,
também, no sentido de especificação de determinados comportamentos, evitando as
alegações de imprecisão que também podem levar à inconstitucionalidade. Neste
sentido, estão em vigor nos EUA leis tipificando objetivamente determinados
comportamentos que levam à desordem e à criminalidade, como a própria
mendicância que se faz de uma maneira agressiva [6], obstrução de calçadas,
embriaguez pública e vandalismo, dentre outras.
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Crítica: Os Pobres e as Minorias como Alvo
Não obstante o extraordinário sucesso da
"Operação Tolerância Zero" na diminuição da criminalidade em Nova
Iorque, há veementes críticos desta política criminal.
Os críticos sustentam que tal política
criminal oprime apenas os pobres, os necessitados e as minorias. Trata-se de
evidente equívoco.
Keeling e Coles são claros ao afirmarem
que o problema não é a condição das pessoas, mas sim o seu comportamento. O que
se busca coibir é o comportamento que causa desordem e que prepara o terreno
para a ascensão da criminalidade. Não importa, portanto, a condição da pessoas,
mas sim sua conduta.
No entanto, os críticos questionam
porque se preocupar com mendicância agressiva, lavagens de párabrisas não
solicitadas, embriaguez pública, quando a violência anda solta nos grandes
centros urbanos. Acaso estariam procurando bodes expiatórios para a violência?
Helen Hershkoff, da União Americana das Liberdades Civis critica uma legislação
que, tratando de maneira equivocada o problema da pobreza, termina por proibir
que os necessitados simplesmente peçam dinheiro. [7]
Kelling e Coles identificam nas
alegações de que o objetivo de manter a ordem nada mais significaria do que uma
forma de opressão aos pobres e às minorias o resultado de décadas do
crescimento de um individualismo sem limites. Produtos deste crescimento seriam
a primazia do indivíduo e o seu direito de ser diferente; uma ênfase nas
necessidades e direitos individuais e a crença de que tais direitos seriam
absolutos; uma rejeição a uma moralidade média dos cidadãos americanos; e, por
fim, a noção de que considerar indivíduos como criminosos os estigmatizaria e
os tornaria realmente criminosos.
Na arena judicial as cortes americanas
desenvolveram um corpo de precedentes legais nos quais a proteção aos direitos
fundamentais e liberdades individuais expandiram-se e foram elevados a posições
muito acima de suas respectivas responsabilidades ou dos interesses da
comunidade. Sendo mais claro: a conduta de um indivíduo causador de desordem
numa comunidade devia ser protegida porque, em última análise, ele tem direito
a ser diferente, e sua liberdade de ser diferente deve ser protegida pelo
judiciário. Os interesses da comunidade não podem sobrepor-se aos direitos e
liberdades individuais de uma pessoa. A desordem cresceu, se expandiu e foi
tolerada porque virtualmente todas as formas de desvios comportamentais não
claramente violentos foram considerados sinônimos de expressão individual, e,
como tal, supostamente protegidas pela primeira emenda.
No entanto, Kelling e Coles afirmam que
a demanda por ordem permeia todas as classes sociais e grupos étnicos. Quando
os usuários do metrô exigiram a restauração da ordem nas estações subterrâneas
não eram os banqueiros ou os tubarões de Wall Street que estavam reclamando.
Estes, afinal, tinham outras alternativas. Foram os trabalhadores, principais
usuários do sistema, que exigiram a restauração da ordem e da segurança.
Os que advogam a restauração da ordem
não estão propondo alguma forma de tirania da maioria. Referem-se, isto sim, a
comportamentos que violam padrões de comportamento largamente aceitos por uma
comunidade, e sobre os quais há um consenso, sem qualquer conotação racial,
étnica ou de classes.
Além disso, a desordem tem conseqüências
mais graves em comunidades pobres e, portanto, estas são justamente as que mais
precisam de ordem a fim de evitar o aumento da criminalidade. Uma comunidade
rica tem certas condições de manter um estado de ordem que uma comunidade pobre
não tem, como, por exemplo, a contratação de segurança privada. É muito mais
fácil consertar uma janela quebrada em uma comunidade rica do que em uma
comunidade pobre. Portanto, antes de oprimir os pobres e minorias, a
restauração e manutenção da ordem, em verdade, vêm em seu auxílio. Relembre-se
da pesquisa de Wesley Skogan, referida no início deste estudo, e que concluiu
que a relação de causalidade entre desordem e criminalidade era mais forte do
que a relação entre criminalidade e outras características encontradas em
determinadas comunidades, tais como a pobreza ou o fato de a comunidade abrigar
uma minoria racial. Para o controle da criminalidade nestas comunidades,
portanto, a restauração da ordem é imprescindível. Pobreza não deve
necessariamente significar crime e desordem.
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Criminalidade: Causas Multifatoriais
A desordem e a ausência de repressão a
pequenos delitos não são, por certo, a única causa do aumento da criminalidade.
E, não sendo a única causa, não foi apenas a ausência de combate à desordem que
fez com que a criminalidade crescesse ininterruptamente durante três décadas
nos EUA.
Na obra The Crime Drop in América (A
Queda do Crime na América), Alfred Blumstein e Joel Wallman, o primeiro
Professor Universitário e Diretor da Associação Nacional de Pesquisas sobre a
Violência, e o segundo Ph.D pela Universidade de Colúmbia e Bolsista da
Fundação Harry Frank Guggenheim, de Nova Iorque (onde faz pesquisas sobre
violência e agressão), apresentam um profundo estudo sobre a queda da
criminalidade nos EUA nos anos 90.
Neste estudo ambos concluem que não há
uma explicação única para a diminuição da criminalidade verificada nos EUA na
década de 90, mas sim uma variedade de fatores, alguns independentes, e outros
que, interagindo entre si, foram importantes para o resultado final.
Blumstein e Wallmann, analisando os
elementos da queda do crime nos EUA, citam as mudanças com relação ao tráfico
de drogas, o incremento da economia, o controle do uso de armas de fogo, o
aumento do número dos estabelecimentos prisionais (e das prisões) as alterações
demográficas e, por fim, a política de combate ao crime, onde incluem a
"tolerância zero" e a importância da comunidade como elementos de
combate ao crime.
O grande aumento da criminalidade nos
EUA verificado em meados da década de 80, segundo os autores, estaria
diretamente relacionado ao aumento do tráfico de cocaína e crack. Blumstein e
Wallman identificam subculturas de violência em relação ao tráfico de cada tipo
de drogas. Identificam também "eras" de apogeu do comércio de
entorpecentes, indicando, basicamente três períodos: o período da heroína
(1960/73), o período da cocaína/crack (com pico em 1984/89), e o período da
maconha/blunt (esta última uma nova "moda", resultante da colocação
da erva no envoltório de cigarros baratos no lugar do próprio fumo, período
iniciado por volta de 1990).
A subcultura do uso e do comércio de
drogas consistiria na organização de normas de conduta que definem o que o
participante deve fazer, o que não deve fazer e qual a punição para a
desobediência. Os participantes, no caso, são tanto os usuários, quanto os
traficantes. No caso da cocaína e do crack, a subcultura de seu uso e tráfico
seria extremamente violenta, autorizando o uso de armas de fogo e o emprego de
ameaças e violência físicas para assegurar a venda, o ponto, o pagamento,
enfim, tudo o que se relacionasse ao comércio da cocaína e do crack e fosse
necessário para assegurar o êxito do "negócio". Portanto, a
subcultura do tráfico da cocaína e do crack, explicaria o vertiginoso aumento
da violência dos anos 80, bem como o declínio da criminalidade na década de 90,
quando encerra-se o pico da venda destas drogas, iniciando-se a era da
maconha/blunt, cuja subcultura é bem menos violenta.
Ao analisar a proliferação dos
estabelecimentos prisionais, os autores informam que os Estados americanos
quadruplicaram sua massa carcerária, resultando em gastos que passam dos vinte
bilhões de dólares anuais, o que são números que falam por si só como evidência
de sua importância na diminuição da criminalidade, quanto mais não seja, pela
simples razão de que o criminoso encarcerado não está nas ruas. Embora não
neguem totalmente a importância do aumento das prisões na diminuição da
criminalidade, Blumstein e Wallman sugerem que a criminalidade teria caído de
qualquer maneira, por outros fatores, ainda que o aumento das prisões não
tivesse ocorrido na escala em que ocorreu, reconhecendo, porém, que esta é uma
questão aberta.
Ao tratarem especificamente da aplicação
da brokenwindowstheory e da "tolerância zero" como política criminal
que levou à redução vertiginosa do crime em Nova Iorque, Blumstein e Wallman
elencam uma série de opiniões de estudiosos que sustentam ou negam a
importância desta política criminal da redução da criminalidade naquela
metrópole. Os autores terminam por concluir que ainda é cedo para aquilatar-se
o real impacto da "operação tolerância zero" e da brokenwindowstheory
na redução da criminalidade em Nova Iorque, concluindo também que não apenas a
polícia deve "levar os louros" pela vitória contra o crime, pois ela
não é uma instituição isolada, mas sim parte de uma rede de instituições,
algumas formais (tribunais e escolas) e outras informais (família, igreja),
todas elas respondendo ao crime. Não deixa de ser uma conclusão razoável para
um estudo que, além de procurar indicar outras razões para a diminuição da
criminalidade nos EUA, procura nitidamente diminuir a importância da teoria de
Kelling e do trabalho de Bratton.
Se o crime tem causas multifatoriais, as
soluções também são multifatoriais. Assim, a "tolerância zero" e a
brokenwindowstheory não são a panacéia de todos os males, mas devem ser
encarados como um importante elemento no combate à criminalidade, embora não o
único.
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A Situação Brasileira
A esta altura, deve-se dizer que não se
advoga a implantação pura e simples do modelo americano à realidade brasileira.
Não apenas questões culturais e legais impediriam isso, senão que a simples
falta de dinheiro para a implementação de uma política criminal nos moldes da
que foi implementada em Nova Iorque configura uma barreira quase que
intransponível para que se repita aquela experiência exatamente como aconteceu.
O que realmente podemos e devemos aprender com a experiência americana é a
necessidade inadiável de repressão às contravenções e aos pequenos delitos,
como forma de manutenção da ordem e prevenção aos crimes graves.
Até pouco tempo atrás (leia-se, antes do
advento da Lei n° 9099/95) o que se notava, no entanto, era a virtual
paralisação do sistema quando se tratava de reprimir contravenções e pequenos
delitos. Isto explica-se pela já referida estratégia de prioridades. A polícia,
reza esta estratégia, deve priorizar a investigação de crimes graves, e não
pode perder tempo com delitos de pouca gravidade.
Alguma condutas tipificadas pela lei das
contravenções penais há muito tempo haviam deixado de ser reprimidas, como, por
exemplo, provocação de tumulto e conduta inconveniente (art. 40), perturbação
do trabalho ou do sossego alheios (art. 42), mendicância ameaçadora (art. 60,
par. único, letra "a"), perturbação de tranqüilidade (art. 65),
embriaguez (art. 62, apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de
modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia),
recusa de dados sobre própria identidade ou qualificação (art. 6.
É bem verdade que tais contravenções não
podem mais ser vistas pelas lentes do intérprete de 1942. Mas nos perguntamos
se alguns dos bens jurídicos que elas protegem por acaso não mais merecem a
proteção da norma penal. O trabalho e o sossego alheios não mais merecem ser
protegidos contra a perturbação? A ordem pública não mais merece ser protegida
contra a provocação de tumulto e condutas inconvenientes? A tranqüilidade não
mais merece ser protegida contra a perturbação? A nosso sentir a resposta deve
ser sim. Mas não apenas pelo valor intrínseco de cada um destes bens jurídicos,
mas sim porque a ofensa a estes bens jurídicos sem a devida repressão configura
as primeiras janelas quebradas que, não consertadas, irão, mais tarde, solapar
todo o sistema de segurança pública, levando ao aumento da criminalidade.
Mudaram, também, certamente, os conceitos de sossego, tranqüilidade, condutas
inconvenientes, etc., que, em 1942 eram um, e em 2003, certamente são outros.
Mas isto, antes de tornar o dispositivo legal letra morta, deveria, bem ao
contrário, garantir sua sobrevivência ao longo dos tempos. É de se observar que
os bens jurídicos protegidos por estas normas dizem respeito, em maior ou menor
grau, à manutenção da ordem na comunidade.
O próprio ato de quebrar janelas
configura o crime de dano (art. 163 do Código Penal). Igualmente a pichação
configura o crime de dano, ambos potencialmente causadores de desordem e
criadores de condições ambientais propícias à ascensão da criminalidade. Com
relação à pichação, a absoluta escassez de jurisprudência sobre o assunto,
diante da dimensão epidêmica com que esta forma do crime de dano se faz
presente nos grandes centros urbanos, dá bem uma idéia da virtual ausência de
repressão a este delito. Em uma pesquisa rápida, encontramos apenas dois
julgados a respeito, ambos do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, e cujas
ementas são as seguintes:
"Dano qualificado. Agente que,
mediante pichação, deteriora a pintura de prédio municipal. Configuração –
Configura o crime previsto no art. 163, parágrafo único, III, do CP, a conduta
do agente que, mediante pichação, deteriora a pintura de prédio municipal
" (Recurso de Apelação, Processo n° 1199469/1, Relator: Amador Pedroso,
12ª Câmara, Data: 05.06.200)
"Dano. Agente que faz pichações
sobre muro já parcialmente pichado. Configuração. Inocorrência: Inexiste crime
de dano na modalidade ‘deteriorar’, na conduta do agente que faz pichações
sobre muro já parcial e anteriormente pichado com propaganda eleitoral ou
semelhante, uma vez que não houve deterioração" (Recurso em Sentido
Estrito, Processo n° 1188271/2, Relator: Evaristo dos Santos, 9ª Câmara, Data:
19.04.2000).
Esta segunda ementa é particularmente
interessante na medida em que refere uma pichação em um muro já deteriorado. Ou
seja, é mais fácil (e há até um certo estímulo) pichar um muro já deteriorado
do que um muro limpo, da mesma maneira que é mais fácil quebrar uma janela
quando outras já estão quebradas. Portanto, assim como uma janela quebrada deve
ser imediatamente consertada, um muro pichado deve ser imediatamente limpo.
Registre-se, ainda, que não
desconhecemos o entendimento dos que sustentam que os bens protegidos pela
criminalização das condutas contravencionais sequer deveriam ser protegidos
pelo direito penal. A estes fica, ao menos, a seguinte questão: não é razoável
utilizar-se o direito penal para proteger minimamente a comunidade de condutas
que criam um clima propício, e quase irresistível, para a ascensão da
criminalidade violenta?
Mas não é apenas a estratégia das
prioridades policiais que levou à ausência de repressão a tais contravenções e
delitos em que não se verifica violência ou grave ameaça à pessoa. Há que se
reconhecer que uma visão, em nosso entender, equivocada do Direito Penal, nos
últimos anos e décadas, em muito contribuiu para isto.
O princípio da intervenção mínima, base
do movimento penal que terminou sendo conhecido como "direito penal
mínimo", orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que
a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário
para a proteção de determinado bem jurídico. [8] Se outras formas de sanção ou
outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse
bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Ainda segundo tal
princípio, o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis
à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos
de forma menos gravosa. A leitura que se costuma fazer deste princípio é que
apenas as condutas que configurem um ato de violência física ou uma ameaça
grave devem ser criminalizadas. Tal conclusão se afigura insustentável quando
resta comprovado que desordem, contravenções e pequenos delitos, quando não
reprimidos, levam à criminalidade violenta. Isto não significa, por óbvio, que
estes pequenos delitos que configuram desordem devem ser punidos com pena de
prisão. No entanto, a resposta deve ser penal, seja por pena de multa seja por
penas restritivas de direitos, como forma de deixar claro ao desordeiro que sua
conduta é grave e não será tolerada pelo estado.
A ordem, o sossego alheio e a
tranqüilidade são bens jurídicos que merecem a proteção da norma penal não
apenas pelo seu valor intrínseco, mas também porque protegendo-os, está-se
evitando a ascensão da criminalidade violenta. Quando as pequenas janelas estão
quebradas, não adianta correr para tentar evitar que as grandes janelas sejam
quebradas. Elas inevitavelmente o serão. Ou seja, não adianta invocar o Direito
Penal para cuidar dos crimes violentos quando desprezou-se seu poder de coerção
com relação a crimes menores, invocando-se princípios como o da intervenção
mínima. Isto significa atuar apenas no resultado e não na prevenção. O
resultado só pode ser o aumento da criminalidade.
O princípio da fragmentariedade, a seu
turno, corolário do princípio da intervenção mínima, sustenta que apenas as
ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto
de criminalização [9]. Segundo Muñoz Conde [10] tal princípio apresenta-se sob
três aspectos: em primeiro lugar, defende o bem jurídico somente contra ataques
de especial gravidade, exigindo determinadas intenções e tendências, excluindo
a punibilidade da prática imprudente em alguns casos; em segundo lugar,
tipificando somente parte das condutas que outros ramos do direito consideram
antijurídicas e, finalmente, deixando sem punição condutas meramente imorais
como a mentira. Novamente aqui o problema está em considerar bens valiosos,
apenas a vida, a integridade física, a liberdade sexual, a liberdade individual
e o patrimônio, por exemplo. E considerar a ordem, o sossego, e a tranqüilidade
como bens não suficientemente importantes para merecerem a proteção da norma
penal. Desde que a ofensa a tais bens sem a devida repressão penal levará
inevitavelmente a uma criminalidade violenta, os mesmos devem ser protegidos
pela norma penal, pois são as pequenas janelas cuja integridade garantirá a
sobrevivência do sistema de proteção social, evitando a proliferação da
desordem e da criminalidade.
Observa-se, hoje, no Direito Penal,
quase que um pensamento único com relação à doutrina do Direito Penal Mínimo.
Seus inúmeros defensores não se cansam de repetir que a repressão penal deve
ser utilizada apenas em caso de crimes graves. Para condutas menos graves,
sustentam, há outras alternativas, tal como as sanções meramente
administrativas. Tal pensamento, repetido exaustivamente, fez e vem fazendo com
que inúmeros operadores do direito na área penal, desde Policiais, até
Promotores e Juízes, simplesmente desprezem os delitos de menor gravidade,
levando à não instauração do inquérito pela autoridade policial, ao
arquivamento do inquérito pelo Promotor de Justiça, ao não recebimento da
denúncia ou à absolvição, pelo Juiz, mesmo quando o delito está presente, sob o
argumento de que trata-se de um ilícito menor, que não justifica a imposição de
uma sanção penal, ou sequer a instauração da ação penal. Mal percebem que ali
está o ovo da serpente, a raiz da criminalidade violenta que, mais tarde, não
terão condições de combater eficazmente.
A situação, em tese, deve ter mudado um
pouco com o advento da Lei n° 9099/95, pois fatos delituosos que sequer
mereciam a instauração de um inquérito, agora merecem, ao menos, a instauração
de um TC. Mas ainda é cedo para chegar-se a alguma conclusão a este respeito,
dado o fato de a lei ser nova e considerando-se a profunda deterioração causada
no sistema de prevenção criminal, decorrente de anos de licenciosidade com
condutas consideradas não dignas de receberem uma resposta penal
É bom registrar que não se advoga uma
criminalização e/ou repressão de toda e qualquer conduta que ofenda qualquer
bem jurídico. Nem todo bem jurídico é passível de proteção por uma norma penal.
Há casos na legislação brasileira em que a criminalização de determinadas
condutas afigura-se como risível. Tome-se como exemplo a Lei n° 7643/87, que
proíbe a pesca de cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras, e cujo art. 1°
determina que "fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento
intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais
brasileiras". A pena é de dois a cinco anos de reclusão. Sem contar o
problema de definir-se o que configura "molestamento intencional",
fato é que o sossego de um cetáceo não é um bem jurídico digno de proteção por
uma norma penal, até porque pode ser muito bem protegido, e até com mais
eficácia, por regulamentos administrativos. Aqui, nem o bem jurídico em si, e
nem a possibilidade de a conduta ser causadora de desordem (inexistente no
caso) justifica uma proteção por uma norma penal.
Assim como há exageros em um sentido, há
exageros em outro. Luigi Ferrajoli que tanta influência exerce na doutrina
pátria com sua obra "Derecho Y Razon", ao analisar quando e como
proibir, critica o Código Rocco, alegando que este elenca uma excessiva quantidade
de bens jurídicos por meio da criminalização de inúmeras condutas, para em
seguida concluir que "nosso princípio de lesividade permite considerar
‘bens’ somente aqueles cuja lesão se concretiza em um ataque lesivo a outras
pessoas de carne e osso" [11]. Como resultado deste entendimento, teríamos
que o tráfico de drogas, o estelionato, o furto, a apropriação indébita, o
peculato, a corrupção, os crimes do colarinho branco (crimes contra a ordem
econômica e tributária), a organização de pessoas para atividades criminosas, e
a lavagem de dinheiro, por exemplo, não merecem ser criminalizados. Idéias como
esta em nada contribuem para o combate à criminalidade e nem mesmo para a
evolução do Direito Penal. Pelo contrário, fazem com que a norma penal seja
invocada apenas quando a situação já está de tal forma deteriorada, que mesmo
sua aplicação pouco efeito terá em seus fins preventivos e repressivos. Isto
sem falar na consagração definitiva do Direito Penal, agora sim, como
instrumento de opressão exclusiva dos pobres, pois estes praticam o roubo
(subtração de bem com violência contra a pessoa), enquanto que os criminosos do
colarinho branco, praticam o peculato, a corrupção, a apropriação indébita e os
crimes contra a ordem tributária e econômica, sem, portanto, exercerem
violência contra uma pessoa "de carne e osso", fazendo tudo isso
diante da tela de seus moderníssimos computadores, enfiados em ternos ingleses,
com gravatas italianas e nos ambientes climatizados e acarpetados de onde,
certamente, dão graças aos céus por receberem tão valioso auxílio doutrinário
na área penal.
________________________________________
Conclusão
Quando se está às voltas com índices de
criminalidade que há muito já ultrapassaram o limite do tolerável, não se pode
ignorar exemplos vitoriosos de combate à criminalidade.O exemplo americano,
pois, deve, no mínimo, ser levado em consideração.
A desordem é, comprovadamente, fonte de
criminalidade e deve ser rigorosamente combatida. O pensamento que se
convencionou chamar de "Direito Penal Mínimo" peca ao considerar como
dignos de proteção pela norma penal apenas condutas que configurem atos de
violência grave exercida contra a pessoa, atuando, portanto, apenas
repressivamente, e não preventivamente em relação à criminalidade violenta. A
norma penal deve proteger, também, aqueles bens cuja violação gera desordem,
medo e, mais tarde, criminalidade.
A brokenwindowstheory e a "operação
tolerância zero" são, ao contrário do que normalmente se pensa, muito mais
políticas de prevenção à criminalidade violenta, do que propriamente política
criminal de repressão.
Nenhum direito pode ser exercido de
forma absoluta. Portanto, não se deve hipertrofiar os direitos individuais em
claro prejuízo aos direitos de uma comunidade de levar uma vida dentro de mínimos
padrões de ordem e segurança, padrões estes largamente aceitos e que reclamam
proteção, não podendo isto ser visto como uma ofensa aos direitos individuais.
________________________________________
Notas
01. A obra "The Crime Drop in
América" (A Queda do Crime na América) anota que, em meados da década de
90 a criminalidade violenta caiu em níveis que não se viam desde a década de
60)
02. Report on a
Pilot Study in the District of Columbia on Victmizacion and Attitudes Towards
Law Enforcement - Departamento de Justiça Americano (Washington D.C. US
Government Printing Office, 1967)
03. "Problemas Atuais de Política
Criminal", Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, n° 4, pág. 14.
04. "Policiamento Comunitário e
Controle sobre a Polícia – a experiência norte-americana", IBCCRIM, São
Paulo, 2000, p. 15.
05. Conforme a Primeira Emenda à
Constituição Americana, "O Congresso não legislará no sentido de
estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou
cerceando a liberdade de expressão, ou de imprensa, ou o direito do povo de se
reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus
agravos".
06. A Lei das Contravenções penais
brasileira tipifica a medicância feita mediante ameaça (art. 60, "a",
da LCP)
07. "Leis Contra Mendicância
Agressiva. Estas leis violam a Constituição: Sim: Silenciando os
Sem-Teto", publicado no ABAJournal, em junho de 1993, conforme citado por
Kelling.
08. Conforme Maurício Antônio Ribeiro
Lopes, in Princípios Políticos do Direito Penal, ed. RT, 2ª ed., 1999, p. 92.
09. Maurício Antônio Ribeiro Lopes, ob.
cit. p. 93.
10. Introdução alDerecho Penal,
Barcelona, Bosch, p. 72.
11. Derecho Y Razon – Teoria
delGarantismo Penal, Editorial Trotta, 4ª Ed., 2000, p. 478.
Tipicidade conglobante
Como citar este artigo: CAPEZ, Fernando.
As Teorias do Direito Penal - O que é a "teoria da tipicidade
conglobante"? Disponível em - 29 outubro. 2009.
De acordo com a teoria acima aludida, o
fato típico pressupõe que a conduta esteja proibida pelo ordenamento jurídico
como um todo, globalmente considerado. Assim, quando algum ramo do direito,
civil, trabalhista, administrativo, processual ou qualquer outro, permitir o
comportamento, o fato será considerado atípico. O direito é um só e deve ser considerado
como um todo, um bloco monolítico, não importando sua esfera (a ordem é
conglobante). Seria contraditório autorizar a prática de uma conduta por
considerá-la lícita e, ao mesmo tempo, descrevê-la em um tipo como crime. Ora,
como, por exemplo, o direito civil pode consentir e o direito penal definir
como crime uma mesma ação, se o ordenamento jurídico é um só. O direito não
pode dizer: pratique boxe, mas os socos que você der estão definidos como
crime. Se o fato é permitido expressamente, não pode ser típico. Com isso, o exercício regular do
direito deixa de ser causa de exclusão da ilicitude para transformar-se em
excludente de tipicidade, pois, se o fato é um direito, não pode estar descrito
como infração penal. Se eu tenho o direito de cortar os galhos da árvore
do vizinho que invadem meu quintal, de usar o desforço imediato para a defesa
da propriedade, se o médico tem o direito de cortar o paciente para fazer a
operação, como tais condutas podem estar ao mesmo tempo definidas como crime?
A tipicidade, portanto, exige para a ocorrência do fato
típico:
I. a correspondência formal entre o que está escrito no
tipo e o que foi praticado pelo agente no caso concreto (tipicidade legal ou
formal) +
II. que a conduta seja anormal, ou seja, violadora da
norma, entendida esta como o ordenamento jurídico como um todo, ou seja, o
civil, o administrativo, o trabalhista etc. (tipicidade conglobante).
Pode-se, assim, afirmar que a tipicidade
legal consiste apenas no enquadramento formal da conduta no tipo, o que é
insuficiente para a existência do fato típico. A conglobante exige que a
conduta seja anormal perante o ordenamento como um todo.
O nome conglobante decorre da
necessidade de que a conduta seja contrária ao ordenamento jurídico em geral
(conglobado) e não apenas ao ordenamento penal. Os principais defensores desta
teoria são os penalistas Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangelli.
(Sobre o tema, consulte: Fernando Capez.
Curso de Direito Penal. 13ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, vol. 1)
Caro leitor, caso haja interesse em
receber outros e.mails como este, com artigos, acórdãos recentes ou outras
informações jurídicas, por favor, envie a sua confirmação, para o endereço
eletrônico , possibilitando o recebimento regular dos informativos do Professor
Fernando Capez.
Valoração paralela na esfera do profano
Diz-se profano aquele não conhecedor da
ciência do Direito, cujas concepções do que seja legal e ilegal são diretamente
influenciadas pela classe social, pelos valores morais e culturais, pela crença
religiosa etc. Tal indivíduo desconhece a ilicitude de alguns tipos normativos,
podendo vir a praticar fato típico, ilícito, mas não culpável. A esse
comportamento denominamos de valoração paralela na esfera do profano.
O
nosso ordenamento adotou a teoria limitada da culpabilidade, assim, a falta da
potencial consciência da ilicitude é conhecida como erro de proibição, isto é,
uma suposição equivocada de que um dado comportamento é lícito.
O próprio mestre Reale categoriza que o
que leva o indivíduo a cumprir a norma jurídica são os valores espirituais,
morais, financeiros, culturais etc., em face dos quais ele foi moldado. (...) A
cátedra de Immanuel Kant, a propósito, disseca haver uma diferença ontológica
entre as coisas como elas são vistas (phenomena) e as coisas como de fato elas
são (noumena). (BARBOSA, Clóvis. As núpcias da princesa cigana, o julgamento de
Frinéia e a valoração paralela na esfera do profano. Disponível em Acesso em
15/02/2008)
O Professor Luiz Flávio Gomes assim
resume o que vem a ser valoração paralela na esfera do profano:
Na teoria do delito, várias foram as
repercussões do inalismo de Welzel: o dolo e a culpa, como dados integrantes da
ação, passaram a fazer parte do tipo (leia-se: do fato típico). Deixaram de
integrar a culpabilidade, que se transformou em puro juízo de censura, de
reprovação. Eliminados os requisitos subjetivos da culpabilidade, nela somente
restaram requisitos normativos:
a) imputabilidade;
b) potencial consciência da ilicitude e
c) exigibilidade de conduta diversa.
Todos esses requisitos são normativos
porque devem ser aferidos pelo juiz. Nem a imputabilidade nem a consciência da
ilicitude, que se acham na cabeça do agente, devem ser enfocados desde essa
perspectiva. Cabe ao juiz examinar em cada caso concreto se o agente tinha
capacidade de entender ou de querer e, ademais, se tinha possibilidade de ter
consciência da ilicitude, ainda que seja nos limites de sua capacidade de
compreensão do injusto - numa "valoração paralela na esfera do
profano" (Mezger, Tratado de derecho penal, trad. de 1955), isto é,
valoração do injusto levada a cabo pelo leigo, de acordo com sua capacidade de
compreensão.
O dolo e a culpa integram a tipicidade
ou contariam com dupla posição, isto é, estariam na tipicidade e também na
culpabilidade? (GOMES, Luiz Flávio. Ciências Criminais. Disponível em Acesso em
15/02/2008) (grifo nosso)
Citação circunducta
A ausência ou deficiência da citação é
causa de nulidade absoluta no processo penal, não estando sujeita à
convalidação, sendo que independe da prova do prejuízo que é presumido nessas
circunstâncias.
Segundo o festejado jurista Fernando
Capez, "o ato pelo
qual se julga nula ou de nenhuma eficácia a citação é chamado de 'circundução';
quando anulada diz-se que há 'citação circunduta'"(CAPEZ, Fernando. Curso
de Processo Penal. 10ª Edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva,
2003, p. 514).
Extraindo-se o significado no léxico
brasileiro, circunduta significa julgar nulo.
Portanto, citação circunduta no processo
penal é aquela anulada em virtude de algum defeito ou vício insanável, que a
torne passível da aludida sanção processual de anulabilidade do ato.
Constituição cesarista
É a constituição em que a participação
popular restringe-se a ratificar a vontade do detentor do poder.
Nas palavras do Professor Marcelo
Novelino: "As constituições outorgadas submetidas a plebiscito ou
referendo na tentativa de aparentarem legitimidade são denominadas de constituições
cesaristas .".
Referência :
NOVELINO, Marcelo. Direito
Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2009, 3ª ed. p. 108.
Contrato vaca-papel
O contrato "vaca-papel" é
denominação comum dos contratos celebrados entre parcerias pecuárias e,
utilizado para encobrir a ocorrência real de mútuo feneratício, ou seja, é um
contrato simulado de parceria pecuária, que tem a finalidade de esconder um
mútuo usuário puro simples, como outras vezes representa o preço pelo qual foi
concretizado um negócio.
A expressão vaca papel traduz uma
patologia jurídica estudada pela doutrina "Marco Pissuno" e também
enfrentada pela jurisprudência brasileira.
Família eudemonista
História de direito de família:
A CF/88 rompendo os paradigmas clássicos
reconheceu, além da família decorrente do casamento, a família monoparental e a
união estável. Sendo assim, distanciou do modelo de família consagrado pela
Igreja. A doutrina moderna vai mais além, sustenta que os modelos de família
previsto na CF/88 não esgotam o conceito de família, sendo possível se afirmar
a existência de família em outros "ninhos não estandardizados".
Luiz Edson Facchin, por exemplo, indaga
se irmão mais velho responsável pela educação e desenvolvimento de irmão mais
novo não é forma de família? O conceito de família não é um conceito técnico;
neste sentido, Caio Mário afirma que família é um conceito de multiplicidade.
Assim, optou-se por abranger um novo
nicho de família, qual seja, a família eudemonista:
Eudemonista é considerada a família
decorrente da convivência entre pessoas por laços afetivos e solidariedade
mútua, como é o caso de amigos que vivem juntos no mesmo lar, rateando
despesas, compartilhando alegrias e tristezas, como se irmãos fossem, razão por
que os juristas entendem por bem considerá-los como formadores de mais um
núcleo familiar.
Para essa nova tendência de identificar
a família pelo seu envolvimento afetivo se deu a nomenclatura de família
eudemonista, que busca a felicidade individual, vivendo um processo de
emancipação de seus membros. A possibilidade de buscar formas de realização
pessoal e gratificação profissional é a maneira que as pessoas encontram de
viver, convertendo-se em seres socialmente úteis, pois ninguém mais deseja e
ninguém mais pode ficar confinado à mesa familiar.
A família identifica-se pela comunhão de
vida, de amor e de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade
e da responsabilidade recíprocas (DIAS, 2006, p. 45). Essa é uma das possíveis
formas de se ter uma família na busca da felicidade de todos os membros
conviventes.
Fantasma errante à procura de um corpo
Em nobre artigo o Dr. Paulo Queiroz
referindo-se ao crime de tráfico ilícito de entorpecentes posiciona-se a favor
da inconstitucionalidade das normas penais em branco:
“Enfim, quanto ao assunto drogas
ilícitas, quem legisla sobre matéria penal é, em última instância, o próprio
Ministério da Saúde, o Poder Executivo, mesmo porque a lei penal em branco era
até então, simplesmente, uma “alma errante em busca de um corpo” (Binding), e,
portanto, carente de auto-aplicação, ante a manifesta imprecisão de seus termos
e conseqüente necessidade de complementação. Até então, enfim, a lei penal era
uma espécie de cheque em branco emitido em favor do Executivo.
Semelhante ato viola, por conseguinte, a
um tempo, ainda que oblíqua e sutilmente, o princípio da reserva legal, por
tolerar que simples portaria emanada do Poder Executivo possa dispor sobre
matéria penal, criminalizando uma dada conduta, bem como o princípio da divisão
de poderes, já que é aquele poder, e não o legislativo, quem acaba legislando
em um tal caso.”
Fetichização do discurso jurídico
A Constituição Federal de 1988 instituiu
um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (trecho
do preâmbulo da Magna Carta). r
Considerando o acima exposto, a atual
visão do Direito exige a compreensão da correlação intrínseca da justiça com a
ética, a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais. O direito,
servindo aos princípios que embasam a Constituição, deve ser analisado de forma
mais ampla, não podendo se restringir à literalidade do texto da lei. r
Isso para dizer que a
"fetichização" do discurso jurídico se baseia no entendimento
contrário, ou seja, "(...) através do discurso dogmático, a lei passa a
ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstraída das condições (de produção) que a
engendraram, como se sua condição-de-lei fosse uma propriedade
"natural". Conseqüentemente, completando o mesmo Sercovich, o
discurso dogmático se transforma em uma imagem, na tentativa (ilusória) de
expressar a realidade-social-de-forma-imediata. No fundo, o discurso jurídico
transforma-se em um "texto sem sujeito", para usar a terminologia de
Pierre Legendre" (STRECK, LenioLuis. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma
exploração hermenêutica da construção do direito. 5ª edição. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004, p.95), construindo um Direito descompromissado com
a ética e com a justiça social. r
Noutros dizeres, a
"fetichização" do discurso jurídico reproduz uma visão do Direito
excessivamente preocupado com a pureza, a forma e o aspecto técnico do saber
jurídico em dissonância com a idéia de que os textos legais devem ser
interpretados sob a óptica instrumental de transformação social. r
Para o autor Henrique GarbelliniCarnio,
os meios para se conseguir efetivar uma realidade produtiva na dogmática
jurídica foram produzidos por: "Viehweg com a Tópica, Tércio Sampaio
Ferraz Junior com a Zetética, ChaimPerelman com a Nova Retórica, Boaventura de
Sousa Santos com a Novíssima Retórica, A fenomenologia heideggeriana e a
hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, Habermas com a Epistemologia
Crítico-Dialética e com a Teoria do Consenso da Verdade e Enrique Dussel com a
Filosofia da Libertação". (CARNIO, Henrique Garbellini. A crise da
dogmática jurídica na fetichização do discurso jurídico. Revista de Doutrina da
4ª Região, Porto Alegre, n.18, jun. 2007. Disponível em
<http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/Edicao018/Henrique_Carnoi.htm>.
Acesso em 04/02/2008)
Inconstitucionalidade chapada
Trata-se de expressão de origem
portuguesa, utilizada pelo ministro Sepúlveda Pertence, e que significa aquela
inconstitucionalidade clara, óbvia, flagrante.
A título de exemplo, discute-se a
possibilidade de o Judiciário analisar os requisitos formais da medida
provisória, quais sejam, a relevância e a urgência. O STF, por sua vez, já
explanou entendimento de que referido ato normativo deve ser objeto de
controle, no tocante aos seus pressupostos constitucionais, pelo Executivo e
pelo Legislativo. Contudo, de acordo com a mesma Corte, excepcionalmente, ou
seja, quando a inconstitucionalidade for flagrante e objetiva e, nos dizeres do
ministro Sepúlveda Pertence, quando a inconstitucionalidade for chapada, o
Judiciário poderá analisar tais pressupostos.
Inconstitucionalidade por arrastamento
Como citar este comentário: RUSSO, Diogo
de Assis. A teoria da inconstitucionalidade por arrastamento. Disponível em 07
agosto. 2008.
A teoria da inconstitucionalidade por
arrastamento, também conhecida como inconstitucionalidade por atração ou
inconstitucionalidade conseqüente de preceitos não impugnados, deriva de uma
construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Portanto, não se
encontra positivada em qualquer norma constitucional ou legal de nosso sistema jurídico.
Por esta teoria, o Supremo Tribunal
Federal poderá declarar como inconstitucional, em futuro processo, norma
dependente de outra já julgada inconstitucional em processo do controle
concentrado de constitucionalidade.
Segundo a obra de Gilmar F. Mendes,
Inocêncio M. Coelho e Paulo Gustavo G. Branco:
A dependência ou a interdependência
normativa entre os dispositivos de uma lei pode justificar a extensão da
declaração de inconstitucionalidade a dispositivos constitucionais mesmo nos
casos em que estes não estejam incluídos no pedido inicial da ação. [...][1]
Portanto, aspectos essenciais para a
aplicação desta teoria devem ser observados.
Em primeiro lugar, o processo que
possibilitou a declaração de inconstitucionalidade da norma principal deve,
necessariamente, ter sido concebido na modalidade concentrada (ou abstrata) de
controle de constitucionalidade. Com isso, conclui-se que a utilização da
teoria da inconstitucionalidade por atração é inconcebível no controle difuso
(ou concreto) de constitucionalidade.
Em segundo lugar, devemos observar a
relação de interdependência entre a norma considerada como principal e a norma
considerada como conseqüente. É o que observa a Ministra Ellen Gracie no corpo
do acórdão da ADI 3645
Princípio da passagem inocente
Vejam a aplicação do princípio da
passagem inocente no Direito Penal.
A Constituição Federal elenca no artigo
1° os fundamentos da República Federativa do Brasil, dentre os quais nos
importa a soberania: r
Art. 1º A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
r
I - a soberania; r
Para Heleno Cláudio Fragoso, o
território é o espaço onde o país exerce sua soberania (FRAGOSO, Heleno
Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16ª edição. Rio de Janeiro:
Forense, 2003, p. 133). r
O território brasileiro compreende o
território geográfico, delimitado pelas fronteiras com outros países, além das
ilhas, o mar territorial e o espaço aéreo. r
A Lei n° 8.617, de 4 de janeiro de 1993,
dispõe sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a
plataforma continental brasileiros, e dá outras providências. r
O artigo 1° dessa lei define o que vem a
ser o mar territorial brasileiro, litteris: r
Art. 1º O mar territorial brasileiro
compreende uma faixa de doze milhas marítima de largura, medidas a partir da
linha de baixa-mar do litoral continental e insular, tal como indicada nas
cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil.
Parágrafo único. Nos locais em que a costa apresente recorte profundos e
reentrâncias ou em que exista uma franja de ilhas ao longo da costa na sua
proximidade imediata, será adotado o método das linhas de base retas, ligando
pontos apropriados, para o traçado da linha de base, a partir da qual será
medida a extensão do mar territorial. (grifo nosso) r
O Brasil adota como regra o princípio da
territorialidade, segundo o qual a lei brasileira será aplicada ao crime
ocorrido no país, independentemente da nacionalidade do autor e da vítima
(artigo 5º, CP): r
Territorialidade r
Art. 5º - Aplica-se a lei brasileira,
sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao
crime cometido no território nacional. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
1984) r
§ 1º - Para os efeitos penais,
consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves
brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer
que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes
ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo
correspondente ou em alto-mar. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984) r
§ 2º - É também aplicável a lei
brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações
estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território
nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar
territorial do Brasil.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984) r
O Direito Internacional Marítimo prevê
uma exceção à aplicação do princípio da territorialidade no Direito Penal, qual
seja o princípio da passagem inocente. r
Na III Conferência das Nações Unidas
sobre o Direito do Mar, foi elaborada a Convenção das Nações Unidas sobre
Direito do Mar, de MontegoBay, 1982, formado a partir de noções costumeiras
posteriormente codificadas. r
O Brasil firmou a Convenção das Nações
Unidas sobre Direito do Mar, em 10 de dezembro de 1982, junto com outros 118
países, e em 22 de dezembro de 1998, veio a ratificá-la. A Convenção entrou em
vigor, internacionalmente, no dia 16 de novembro de 1994. r
Resumidamente, o princípio da passagem
inocente é instituto jurídico próprio do Direito Internacional Marítimo e
permite a uma embarcação de propriedade privada, de qualquer nacionalidade, o
direito de atravessar o território de uma nação, com a condição de não ameaçar
ou perturbar a paz, a boa ordem e a segurança do Estado costeiro (artigo 19, da
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar). r
Esse instituto aplicado ao Direito
Penal, permite que crimes cometidos dentro de navio estrangeiro, de passagem
pelo país, não sejam julgados pela lei do país em trânsito, desde que não
afetem um bem jurídico nacional. Ex.: árabe assassina um americano em uma
embarcação de bandeira italiana. r
"(...) Trata-se, portanto, de um
direito que cria uma situação intermediária entre a liberdade de navegação,
princípio válido em alto mar, e a jurisdição territorial plena. A título
exemplificativo, pode-se arrolar algumas atividades não contidas no conceito de
passagem inocente: pesca, exercícios militares e atos de propaganda atentatório
à segurança do Estado costeiro. Submarinos devem navegar à superfície com
bandeira arvorada (art. 20). A passagem independe de autorização prévia. Isto
vale mesmo para navios militares, embora alguns países não partilhem dessa
interpretação e exijam autorização ou notificação nesses casos. (FIORATI, Jete Jane.
A disciplina jurídica dos espaços marítimos na Convenção das Nações Unidas
sobre Direito do Mar de 1982 e na Jurisprudência Internacional. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999. p. 80-81) r
O tráfego marítimo será regido pelas
leis do Estado costeiro, que mantém a prerrogativa de legislar sobre proteção
de cabos e dutos, conservação de recursos vivos do mar, prevenção da poluição,
investigação científica, entre outros temas incluídos no art. 21. (Essas
competências são exercidas, em geral, no Brasil, pela Autoridade Marítima,
constituída na Diretoria de Portos e Costas, vinculada ao Comando da Marinha e
ao Ministério da Defesa, e pela Agência Nacional do Transporte Aquaviário, em
conformidade com as Leis n. 9.537, de 11 de dezembro de 1997, e n. 10.233, de 5
de junho de 2001, respectivamente. Cumpre registrar que a competência para
julgar "os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e
as questões relacionadas com tal atividade" foi atribuída no Brasil ao
"Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão
autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Ministério da Marinha no
que se refere ao provimento de pessoal militar e de recursos orçamentários para
pessoal e material destinados ao seu funcionamento". Art. 1º da Lei nº
5.056, de 29/06/66) A permissão de passagem não dá direito à cobrança de taxas
aos navios estrangeiros (art. 26). r
O direito de passagem inocente não foi
uma invenção das Conferências da ONU. De origem consuetudinária, foi
reconhecido pela jurisprudência da Corte Internacional de Justiça no caso do
Canal de Corfu. No incidente, a Albânia havia depositado ou permitido a
colocação de minas marinhas no Canal de Corfu, atitude motivada pela passagem
de navios militares ingleses pelo Canal. Tais minas atingiram cruzadores
britânicos, levando-os a pique, com mortes da tripulação. Na decisão, a Corte
reconhece o direito de passagem inocente de navios de guerra por estreitos que
ligam duas porções de Alto-Mar, mesmo sem autorização prévia do Estado
ribeirinho, não obstante reconhecer que a Albânia tinha o direito de impor
certas regras para o exercício do direito de passagem, ante a situação
excepcional de suas relações com a Grécia naquela época. (COUR INTERNATIONALE
DE JUSTICE. Affaire duDétroit de Corfou (fond). Arrêtdu 9 avril 1949. p.
26-32.) r
A Convenção recepcionou a passagem por
tais estreitos através de um regime especial, denominado de passagem em
trânsito (artigo 37 a 44). Aplica-se o regime da passagem inocente se o
estreito situar-se entre uma porção de Alto-Mar ou Zona Econômica Exclusiva e o
mar territorial de um Estado estrangeiro (artigo 45) ou se ele estiver entre
uma ilha do Estado ribeirinho e seu território continental e for possível
navegar por outra rota marítima do outro lado da ilha (artigo 38.1). O regime
da passagem em trânsito foi criado durante os trabalhos preparatórios da IIIª
Conferência. As diferenças entre os dois regimes são apontadas por Fiorati:
"a passagem de trânsito aplica-se a navios e aeronaves, enquanto que a
passagem inocente somente a navios; durante a passagem em trânsito o navio ou a
aeronave não poderão ancorar, fundear ou aterrissar, a não ser em casos de
grave perigo, enquanto que na passagem inocente isto é permitido; na passagem
em trânsito o Estado costeiro não poderá abordar e parar o navio, enquanto na
passagem inocente isto é possível em casos em que o navio esteja contrariando
as leis internas do Estado; a passagem inocente poderá ser suspensa conforme
motivos de segurança do Estado costeiro, a passagem em trânsito não." Ob.
cit., p. 184). Na prática, o direito de passagem inocente sofre limitações não
previstas expressamente pela Convenção. Além da autorização exigida para a
passagem de navios militares, as restrições à passagem inocente atingem também
a passagem de navios causadores de poluição ambiental e portadores de material
ultranocivo e material nuclear. O fundamento dessas restrições encontra-se em
regras de proteção do meio ambiente. (AGYEBENG, William K. Theory in
Search of Practice: The Right of Innocent Passage in the Territorial Sea. Cornell International Law Journal, v.
39, p. 371-400, 2006)" (LUPI, André Lipp Pinto Basto.O direito
internacional e as zonas costeiras. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1453,
24 jun. 2007. Disponível em
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9959>. Acesso em
11/03/2008). r
Existem doutrinadores que entendem que
esse princípio está constitucionalmente previsto no artigo 5°, inciso XV. No
entanto, devemos discordar, vez que o livre deslocamento em território nacional
diz respeito a brasileiros ou estrangeiros residentes no país: r
Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: r
XV - é livre a locomoção no território
nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele
entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
Sentença autofágica
A palavra fágico origina-se do grego
phagos, querendo significar aquele que come. Considerando uma das
definições de auto, significando próprio, podemos concluir que autofágico é
aquele que come a si próprio.
A sentença autofágica ou de efeito
autofágico é aquela em que o juiz reconhece o crime e a culpabilidade do réu,
mas julga extinta a punibilidade concreta.
No entender do Professor Dr. Luiz Flávio
Gomes:
Fala-se
em sentença autofágica porque ela admite ter havido crime mas ao mesmo tempo
extingue a punibilidade do Estado.
Para fins penais é como se o agente nunca tivesse sido processado. Em outras
palavras: essa sentença não vale para antecedentes criminais, reincidência etc.
(GOMES, Luiz Flávio. Negligência paterna, homicídio não intencional e perdão
judicial. Disponível em: 18 abril. 2007)
A título exemplificativo, tomemos o instituto jurídico do perdão judicial. Como pressuposto
lógico, o magistrado deve analisar o mérito da causa e reconhecer, a princípio,
a culpabilidade do agente, para, apenas depois, conceder-lhe o perdão judicial.
STJ Súmula nº 18 - Perdão Judicial -
Efeitos da Condenação A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória
da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório.
O fundamento principal para a concessão
do perdão judicial, nesses casos, é o seguinte: o pai, com sua conduta, já
sofreu o suficiente diante da sua própria negligência. Ele experimenta uma
espécie de "pena natural", isto é, uma pena (um castigo) derivada de
fato por ele mesmo praticado. Nessas situações, a pena estatal se torna
totalmente desnecessária. Incide aqui o princípio da (des)necessidade da pena,
que é defendido, dentre outros, pelo Professor Roxin. (GOMES, Luiz Flávio.
Negligência paterna, homicídio não intencional e perdão judicial. Disponível
em: 18 abril. 2007)
Em suma, o efeito autofágico da sentença
ocorrerá quando a decisão, estatuindo uma pena que permite a prescrição
retroativa, traz em seu interior um elemento que conduzirá à sua própria
destruição.(Disponível em Acesso em 26/02/2008)
Síndrome de inefetividade das normas constitucionais
Concluindo: fala-se em síndrome da inefetividade
das normas constitucionais quando, no contexto das normas constitucionais de
eficácia limitada de princípio institutivo, não há na ordem jurídica norma
infraconstitucional que regulamente a matéria, o que perpetua a ineficácia e a
inaplicabilidade daquela.
Teoria imanentista da ação
Imanente quer dizer aquilo que está
compreendido na essência do todo, aderente, permanente. (Dicionário
Melhoramentos da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1994, p. 543) r
A teoria imanentista (civilista ou
clássica) do direito de ação reinou absoluta desde o Direito Romano, nas lições
de Celso e Ulpiano, até meados do século XIX e teve como um de seus maiores
defensores Savigny, que desenvolveu e modernizou a concepção romana. r
Esta teoria parte do conceito de ação
dado pelo jurista romano Celso, segundo o qual a ação seria o direito de pedir
em juízo o que nos é devido (ius quod sibidebeatur in iudiciopersequendi).
Deste conceito surgiram várias conceituações que resultavam, segundo Ada
Pellegrini Grinover e Cândido Dinamarco, em três conseqüências inevitáveis: a)
não há ação sem direito; b) não há direito sem ação; e c) a ação segue a
natureza do direito. r
Desta forma, o direito de ação seria
imanente ao direito material, ou seja, uma qualidade que todo direito material
possui ao ser violado. r
O Código Civil brasileiro de 1916, no
artigo 75, adotava tal teoria e trazia a visão de que o processo não passava de
mero procedimento ligado ao direito material e desprovido de independência,
onde a ação é tida como o próprio direito subjetivo substancial violado em
reação contra a lesãor: "a todo direito corresponde uma ação, que o
assegura". r
Além disso, a teoria imanentista do
direito de ação não teve como explicar os casos em que o agente houvesse promovido
um processo, sem ter direito, isto é, ficou impossibilitada de explicar o
fenômeno da ação improcedente, caso em que a ação processual não teria sido o
direito de perseguir em juízo o que nos é devido, como bem ressalta o eminente
doutrinador Ovídio Baptista. (BOIS, Marina Du. A Teoria do Direito Abstrato de
Agir. Disponível em Acesso em 11/02/2008) r
Como reflexo desta teoria no nosso
ordenamento jurídico, foi expedido o Regulamento nº 737, de 25 de novembro de
1850, com o intuito de disciplinar o processo, uma vez que o considerava como
simples meio de exercício dos direitos, cabendo à lei a sua disciplina, assim,
o Poder Executivo editou o Decreto nº 763, de 19 de novembro de 1890.
TEORIA DA GRAXA SOBRE RODAS
“A teoria da graxa sobre rodas valoriza a corrupção como um aspecto positivo, com a possibilidade de implemento do crescimento econômico.”
Aposto que vocês pensaram exatamente o que eu pensei (rs), e de fato, os caras são muito criativos. Mas vida de concurseiro é isso mesmo, não é verdade?
E já que é para ser criativo, adotamos a “teoria do ciclo”: errar, aprender, e não errar novamente, esperar a nova teoria, errar...”. Brincadeiras a parte, vamos tentar entender a referida “teoria”, bastante criticada por professores, por falta de fundamento científico e teórico.
Em resumo, a teoria da graxa defende a possibilidade de corrupções boas, que são aquelas que de alguma forma beneficia a população. É o clássico político brasileiro que justifica as suas falcatruas com as suas execuções positivas em prol da sociedade, a exemplo de captação deinvestimentos estrangeiros, obras que empregam muitas pessoas etc.
Portanto, de fato, conforme o gabarito, a assertiva estava correta. Quem ia imaginar, né?
Ademais, conforme extraído do site Justificando:
“A teoria, segundo o teólogo Wagner Francesco, que possui pesquisas em áreas de Direito Penal e Processual Penal, diz que existem corrupções boas, “que são aquelas que ajudam o sistema a se movimentar – pense, por exemplo, em obras públicas que são feitas por mero interesse político. Assim, todo aquele político que ‘rouba, mas faz’, é adepto dela”. http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/03/questao-em-concurso-do-ministerio-publico-de-minas-gerais-sobre-teoria-da-graxa-causa-polemica/
Obviamente que, além de críticas quanto ao nome, a teoria não merece respaldo que a legitime. Nenhuma corrupção é salutar, não é verdade amigos?
Em um Estado Constitucional e Republicano e Direito, todas as condutas deverão estar pautadas na probidade, correção e honestidade, e teoria nenhuma pode justificar desvios da coisa pública, sob pena de responsabilização do agente malfeitor
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